Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Suzane Von Ritchtofen é retrato de paixão nacional pelo True Crime
Acho sempre curioso quando críticos e colunistas afirmam categoricamente que o gênero "true crime" é uma moda gringa que o brasileiro adotou recentemente. Minha memória faz um flashback imediato: eu no meu quarto de adolescente onde acordava de manhã todos os dias. Junto com o cheiro do café que subia pela janela, vinha o som do rádio sintonizado em programas como "Patrulha da Cidade" ou "Show do Antonio Carlos" ambos na rádio Tupi, que misturavam editorial de opinião, humor, e claro, muitos crimes. Super bem-sucedidos, esses programas criados na década de 60 eram os vovôs dos jornais impressos pingando sangue, e dos programas televisivos mundo-cão como "Linha Direta", "Você Decide" e "Aqui Agora" - sucessos estrondosos dos anos 90.
E não eram só os programas sensacionalistas que traziam essas histórias até nós. O cinema brasileiro de documentário e ficção fez grandes sucessos no gênero com clássicos como "Ônibus 174" ou "Bandido da Luz Vermelha" - filmes que correram o mundo e ganharam prêmios por onde passaram mas também foram sucesso de público.
A verdade é que o brasileiro sempre amou - e muito - se chocar com crimes escandalosos no conforto do seu lar. E um dos crimes brasileiros que mais nos deixou vidrados e obcecados com certeza foi o assassinato do casal Manfred e Marísia Von Ritchtofen.
A história é bem conhecida. A filha mais velha, Suzane Von Ritchtofen abre a porta na mansão da família para que seu namorado Daniel Cravinhos e o irmão dele, Christian Cravinhos, matem os seus pais de maneira cruel: a pauladas.
A cobertura da mídia foi sensacionalista, massiva e onipresente. Era impossível ligar a TV em 2002 e não dar de cara com mais um detalhe sórdido do assassinato. Nos anos seguintes, programas de TV de todo o tipo exploraram a história, e Suzane deu duas entrevistas famosas, uma pro apresentador Gugu Liberato e outra para o Fantástico e inscreveu seu nome no panteão de criminosas favoritas da nação.
Não posso negar que me incluo na categoria de obcecada pelo caso. O primeiro presente de namoro que meu marido me deu foi muito romântico - o livro "Casos de Família - Arquivos Richthofen e Arquivos Nardoni" da criminóloga e escritora Ilana Casoy onde a autora detalha os dois casos, com prints dos processos e descrições bem detalhadas das reconstituições, investigação, processo judicial e tribunal do júri que condenou Suzane e os irmãos Cravinhos. E estavam ali todos os elementos que faziam daquele crime uma grande história que merecia ser contada - se possível também na ficção.
Mas se já vimos essa história de cabeça para baixo no jornalismo, nos documentários e nos livros, para quê a ficção? Há uma frase atribuída ao escritor Julio Cortázar que diz "A ficção é a história secreta das sociedades". Em um evento tão tétrico, traumático e violento, o espectador quer respostas, quer saber o porquê, quer, na frente da tela, criar sentido para aquilo. Mas essas respostas são impossíveis de serem alcançadas, afinal um assassinato sempre é um evento da categoria do absurdo. Algo humano se desencaixou para que acontecesse. Mas através da leitura de um assassinato, suas motivações, execução e consequências podemos ter um retrato bem claro da sociedade em que vivemos.
A parceria entre Ilana Casoy e o escritor de tramas policiais Rafa Montes colocou fim nessa espera. A dupla, já bem sucedida em outros projetos como a série "Bom Dia Verônica" na Netflix, escreveu um filme duplo, dividido entre a perspectiva de Suzane e a perspectiva de Daniel. Um acerto artístico assombroso, afinal é essa lacuna de porquês, essa história secreta e não contada que estamos buscando quando pensamos nos assassinatos que aconteceram no coração da elite paulistana.
Em uma radicalização macabra do "She Said/He Said" - a expressão em inglês que descreve situações onde um casal briga e é impossível saber a verdade - as defesas de Suzane e Daniel adotaram a estratégia de vitimização dos clientes e demonização do oponente; na versão de Daniel, Suzane assume características femininas imperdoáveis: é manipuladora, sexualmente voraz, mandona, controladora. Na versão de Suzane, Daniel é o pior que existe na masculinidade: agressivo, abusivo, sexualmente violento e louco pelo dinheiro da namorada.
Jamais saberemos a verdade exata do que aconteceu para que dois jovens amantes se tornassem assassinos. Provavelmente foi uma mistura única das duas versões, Mas a beleza da ideia dos filmes "O menino que matou meus pais" e "A menina que matou os pais" é que agora cada um de nós pode criar a receita fatal dentro da própria cabeça.
Você pode assistir os filmes na Amazon Prime Video com a certeza que ficção baseada em crimes reais é um gênero mais brasileiro que samba e caipirinha. E que Ilana Casoy e Rafael Montes superaram com folga muitos dos seus concorrentes gringos.
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