'Escape certeiro': como o cinema nacional pode ir além da comédia?
Até o momento, 2024 tem sido um ano generoso para o cinema brasileiro. Impulsionada pelos sucessos das comédias "Minha Irmã e Eu" e "Os Farofeiros 2", a produção cinematográfica nacional voltou a bater a casa dos milhões de espectadores e a soma dos ingressos vendidos para filmes tupiniquins já supera mais de 3,7 milhões de pessoas que foram às salas de cinema prestigiar a sétima arte brasileira em 2023. O desempenho desses dois longas não é uma surpresa, já que comédias são um hit há décadas. De 1970 a 2023, dos 50 filmes nacionais mais assistidos no circuito exibidor, 34 eram desse gênero.
A roteirista Mariana Zatz, responsável por escrever "Turma da Mônica: Laços" e "Turma da Mônica: Lições", aponta a razão da popularidade da comédia em nosso país. "A comédia é um escape certeiro, é garantia de que você vai ver algo agradável e divertido", analisa. "Mas há também um aspecto mercadológico. A comédia costuma ser um gênero "fácil" de produzir, já que não pressupõe muitos efeitos especiais, grandes produções, nada muito diferente. Havendo boas piadas, entregues por um bom elenco, o filme se vende sozinho."
Diante dessa vocação para fazer rir, uma questão paira no ar: como fazer para que o audiovisual nacional consiga emplacar sucessos de outros gêneros com mais frequência? A coluna, que não tem nada contra a comédia, mas quer ver uma variedade de gêneros no cinema brasileiro, conversou com profissionais do setor que, a partir de suas experiências, elencam caminhos para ampliar a produção de filmes nacionais e fazer com que eles caiam de vez no gosto popular.
O fator investimento público
Paulo Barcellos, CEO da O2 Filmes, uma das mais importantes produtoras do país, destaca a importância de pensar no cinema como uma indústria para termos uma pluralidade de histórias. "Precisamos de um line-up que nos permita, no mínimo, emendar um projeto no outro de maneira que você sempre tenha ao menos um projeto em cada etapa de realização", defende. "O desafio é financiar os projetos. Hoje cada projeto é financiado individualmente e, às vezes, levam-se anos para levantar todo o dinheiro. É um modelo complicado de escalar no formato atual.
" Segundo Barcellos, o investimento público necessita estar mais presente para o audiovisual local se consolidar. "Com exceção dos EUA, o mundo inteiro depende de políticas públicas e leis de incentivo para produzir filmes, um setor que emprega muita gente", afirma.
Juliana Funaro, diretora executiva da Barry Company, que produziu longas como "Eduardo e Mônica", acredita que, mais do que editais e leis de incentivo, é preciso implementar nacionalmente políticas de cash rebate (mecanismo que devolve uma parte do dinheiro investido numa produção para a empresa realizadora) para expandirmos a nossa produção de filmes. "Colômbia e Uruguai têm programas de avançadíssimos de cash rebate, por exemplo", diz. "As políticas públicas também precisam envolver o Ministério do Turismo como acontece em outros países."
Responsável por "Desapega", nono filme nacional mais visto em 2023, a produtora Patrícia Chamon lembra que a cota de tela, política que exige que as salas de exibição reservem uma porcentagem do circuito para filmes brasileiros e que voltou a vigorar recentemente, também é essencial para garantir a pluralidade do cinema brasileiro, além de investir em formação de plateia. Para Alvaro Campos, roteirista da comédia romântica "Evidências do Amor" e diretor do drama "Mundo Novo", a plataforma de streaming que o governo pretende lançar no segundo semestre para reunir projetos nacionais pode ajudar o espectador a se acostumar ainda mais a ver conteúdo nacional. "É uma experiência parecida com o que houve na Argentina", compara. "A questão é se essa plataforma se manterá continuada nos próximos governos."
Lusa Silvestre, um dos roteiristas mais requisitado das últimas décadas, aponta outra questão que impede o brasileiro de arriscar ver um filme diferente da comédia e que pode ser solucionada com a atuação do governo: o preço do ingresso. "Para passar do milhão de bilhetes vendidos, as classes mais populares têm que ir ver o filme nacional", analisa. "Não tem subsídio pra indústria farmacêutica, pra carro, pra soja? Por que não tem pra cinema? O cinema nacional, antes do governo Bolsonaro, faturava R$ 25 bilhões. Merecemos esse apoio. É uma atividade que rende um bilhão de impostos."
Que outros gêneros podem agradar o brasileiro?
Otimista, Juliana Funaro, da Barry Filmes, acredita que longas de ação podem abocanhar parte da bilheteria nacional, pois o brasileiro demonstra interesse em consumir esse tipo de gênero. "Minha experiência mostra que há um aumento de investimentos em projetos de ação e que esses produtos tem tido uma boa aceitação quando eles têm orçamento adequado para serem bem feitos", analisa. "Se a gente tiver um aumento dos investimentos nos projetos brasileiros de ação, teremos um crescimento de público também."
Lançado em 2023, o desempenho de "O Sequestro do Voo 375", escrito por Lusa Silvestre, corrobora a tese de Juliana Funaro. O filme levou quase 200 mil pessoas aos cinemas e se tornou a sexta produção brasileira mais vista ano passado. "O público está acostumado a ver filmes de ação com uma riqueza de detalhes, que é muito longínquo pra gente aqui. Mas dá para fazer (bons filmes de ação), porque os escandinavos não têm a mesma grana dos americanos, mas produzem coisa boa", opina Lusa. "O Sequestro do Voo 375" custou US$ 5 milhões (aproximadamente R$ 25 milhões), e esse é o que os gringos gastam só com cachê do ator protagonista."
Além da ação, Paulo Barcellos acredita que o público brasileiro tem apetite para consumir produções nacionais dos mesmos gêneros que eles gostam de ver na cinematografia americana: ficção científica, thriller e suspense. Mas, em sua na visão, a questão do custo x risco impede que os produtores se arrisquem nesse gênero com mais frequência. "Diferentemente das comédias, fica bem mais caro fazer um bom filme nesses gêneros. Muitos preferem fazer três comédias com o mesmo dinheiro e reduzir o risco em três títulos."
Giuliano Cedroni, roteirista e produtor do Ventre Studios, aponta outro gênero que pode fazer a cabeça dos brasileiros: o romance. "Uma boa história de amor nunca envelhece, é universal, e ajuda o ser humano a esquecer do presente e a acreditar no futuro", teoriza. "Se antes as histórias de amor eram quase que na sua totalidade héteros e mono raciais, agora temos uma combinação maravilhosa a se explorar. O brasileiro ama amar."
Já a produtora Clélia Bessa, da Raccord Produções, que prepara a adaptação de "Quarto de Despejo", que narra a história de Maria Carolina de Jesus, lembra que biografias sempre vão bem. "O brasileiro gosta de se ver na tela."
Parceria com o streaming
Independentemente da posição que exercem no audiovisual brasileiro, uma opinião é unânime entre os profissionais entrevistados pela coluna: a parceria com streaming é necessária para expandir as narrativas da produção cinematográfica nacional. "A confiança dos streamings em grandes produções no Brasil foi e segue sendo fundamental para o crescimento do mercado brasileiro", acredita Giuliano Cedroni. "Antes da entrada da Netflix no país, logo seguida pelos outros streamings, os longas de grande orçamento demoravam anos para angariar recursos, e, como resultado, se filmava pouco. E país que filma pouco, treina pouco, erra pouco, mas também acerta pouco."
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Quero receberPaulo Barcellos afirma que o investimento dos streamings em projetos brasileiros ajudou que desenvolvêssemos e produzíssemos projetos de diversos gêneros e tamanhos, adquirindo, desse modo, um know-how enorme de produção e storytelling. "Eu acredito que, em mais alguns anos, podemos viver um momento parecido com o da Coréia do Sul, mas, para isso, precisamos que os investimentos se mantenham e tenham previsibilidade", aposta o CE0 da O2 Filmes que, atualmente, produz "Corrida dos Bichos", um filme nacional de sci-fi distópico, também em parceria com a Prime Video.
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