Série da Netflix transforma feminicídio de influencer em narrativa sádica
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Como jornalista e roteirista, creio que só há duas razões que justifiquem a produção de um documentário baseado em um crime real:
1) Recontar a história em questão pode gerar um debate a respeito de um assunto e essa discussão tem potencial de provocar transformações na sociedade.
2) O ato retratado na produção segue impune e é preciso trazer holofotes novamente para o acontecimento com a esperança de que a justiça seja feita.
A série "Homicídio nos EUA: Gabby Petito", que estreou na última terça-feira (18) e está entre os conteúdos mais vistos da Netflix, tinha material em mãos para seguir pelo primeiro caminho, mas desperdiçou a oportunidade e optou por desenvolver uma narrativa sádica ao retratar como a aspirante a influencer acabou covardemente assassinada pelo namorado com quem viajava em uma van pelos Estados Unidos a fim de criar conteúdo para redes sociais e um canal de YouTube.

Preocupada em mostrar como Gabrielle Petito estava aprisionada em um relacionamento abusivo, a série não se aprofunda em temas que o assassinato dessa jovem de 22 anos levantou e que merecem ser esmiuçados, como a maneira equivocada como a polícia agiu ao receber uma denúncia de que Gabby estava sendo vítima de violência doméstica ou o fato de que um crime envolvendo uma mulher branca gera mais comoção e repercussão do que homicídios e desaparecimentos de vítimas negras, indígenas, latinas ou asiáticas.
A série deseja tão fortemente que o público experiencie o pesadelo que Gabrielle Petito vivia que a produção escolhe retratar nos mínimos detalhes o passo a passo que levou ao assassinato da jovem. Tudo é orquestrado para fornecer ao espectador o clímax da trama: o modo como Gabby perdeu a vida. A falta de sensibilidade é tamanha que, às vezes, parece que estamos acompanhando uma ficção.
Em uma das sequências mais sádicas da série, acompanhamos imagens de arquivo da câmera corporal de policiais que abordaram Gabby e o namorado após receberem uma denúncia que ele havia agredido a companheira. O desespero e a fragilidade da influencer de estar naquela posição, o modo como ela é colocada no papel de causadora da violência que sofreu e as piadas que um dos policias faz sobre a situação são de embrulhar o estômago.

Essas cenas teriam razão de existir na série se, a partir delas, algum tema fosse explorado com mais profundidade. Nada disso acontece. O sofrimento de Gabby é meramente ilustrativo. Ver tudo o que ela passou é como se Gabby fosse violentada mais uma vez.
Entendo que true crime virou um gênero que ganhou muita popularidade nos últimos anos, mas é preciso levar em consideração questões éticas e morais ao desenvolver um projeto desse tipo e se perguntar se é realmente necessário produzir uma série ou um filme baseado em um crime real apenas pelo desejo de recontar uma história trágica.
Apesar de vivermos tempos de muita concorrência entre os streamings, que disputam fervorosamente a atenção do público, creio que não vale tudo pela audiência. Alguns limites merecem ser respeitados.
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