Novo 'Borat' renova sua missão ao mostrar o lado mais repugnante da América
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O mundo mudou um bocado de 2006, ano em que um repórter da gloriosa nação do Cazaquistão visitou os Estados Unidos com "grande sucesso", até esse 2020 de floresta em chamas, governantes ineptos e pandemia do coronavírus. É de certa forma reconfortante, confesso, observar que duas coisas permanecem imutáveis: a estupidez do "americano médio" e o tal jornalista, Borat Sagdiyev.
O timing para o lançamento de "Borat: Fita de Cinema Seguinte", agora direto em streaming, não poderia ser melhor. Afinal, os Estados Unidos encontram-se às vésperas das eleições presidenciais, e um filme rodado em um ano de polarização - e em meio à pandemia - não poderia ignorar a idiotia aguda que acomete parte da população que transforma seus atores políticos em ídolos.
Á única tarefa impossível aqui seria, então, repetir a estrutura que Cohen e sua equipe usaram ao rodar "Borat" quatore anos atrás. Em 2006 o personagem era desconhecido, mas uma bilheteria global de mais de US$ 260 milhões basta para criar um ícone pop. Ou seja, de cara seria impossível gravar em locação sem que Cohen/Borat fosse reconhecido. A piada tinha validade para um filme.
A boa notícia é que esse repeteco estrutural sequer foi arriscado em "Fita de Cinema Seguinte". Em vez de construir um fiapo de narrativa apoiado em uma série de sketches, aqui o diretor Jason Woliner, um veterano de comédia na TV, arrisca seguir um roteiro mais ou menos amarrado. Se o filme arrisca assim perder sua verve anárquica e subversiva, coube a Cohen segurar o barco com seu talento cômico irrefreável.
Ah, sim, a trama. Depois de fazer seu filme na América, Borat foi condenado a trabalhos forçados perpétuos ao fazer do Cazaquistão uma piada mundial. A eleição de Donald Trump, porém, abre espaço para que o país possa negociar com alguém "menos destrutivo que o terrível Barack Obama".
Estando Trump alinhado com os piores líderes no planeta (para nosso "orgulho", adivinhem o sujeito com histórico de atleta citado entre essa turma), o líder do Cazaquistão dá a Borat a missão de entregar um "presente" ao vice Mike Pence para conseguir favores ao país. Para o espanto de Borat, o contâiner com o tal presente (um chimpanzé-celebridade) traz outra carga em seu lugar: a filha do jornalista, Tutar (a surpreendente Maria Bakalova).
É aí que este segundo "Borat" torna-se um road movie político, com o personagem de Sacha bolando maneiras de entregar a própria filha de presente a Pence - ou a qualquer um do círculo íntimo de Trump - como sinal de "boa vontade" do povo do Cazaquistão. Nessa jornada o filme podia enxugar um pouco de gordura, já que abraça a rotina de colocar Borat em meio ao "americano médio" para, com a própria estupidez, revelar a pobreza intelectual e moral de seus interlocutores.
Esse pedaço sofre com a inevitável comparação com o filme anterior, já que boa parte dos novos encontros de Borat parecem acontecer com atores treinados, e não com um público incauto - a exceção óbvia é um congresso pró Trump, encabeçado pelo próprio Pence. É desesperador ver Cohen, fantasiado de Donald Trump, abordado por seguranças em meio a um público adornado por bonés MAGA.
Essa familiaridade, contudo, evapora-se em um terceiro ato brilhante, que coincide com a evolução da ameaça do coronavírus e as medidas de quarentena adotadas (ou não) pela população ianque. Seria fascinante ver Borat em um filme inteiro com essa pegada, alimentando teorias de conspiração e usando sua total falta de noção para confrontar negacionistas e outros malucos.
É aqui também que "Borat: Fita de Cinema Seguinte" consegue o feito de desenvolver o arco dramático de seu protagonista. É quando sua relação com a filha adolescente precisa superar a cultura misógina, preconceituosa e ignorante que define o personagem. É também quando Borat consegue ventilar uma insuspeita humanidade.
A partir desse ponto o filme reserva um par de surpresas e reviravoltas que, acredito, tenha deixado seus realizadores ao mesmo tempo absolutamente chocados e completamente satisfeitos. É quando Tutar, agora com ideias feministas e querendo sair da sombra do pai, consegue uma entrevista com uma figura política poderosa do círculo de Trump.
A trama, então, salta perigosamente para caminhos reais de assédio sexual e abuso infantil. É grotesco. É repugnante. E é também absolutamente fascinante por ter sido capturada em câmera, sem pudor, sem espaço para retratação - o que o tal político (deixo você descobrir quem é assistindo ao filme) passou essa semana inteira tentando fazer.
Mesmo sem o elemento surpresa de seu antecessor, "Borat: Fita de Cinema Seguinte" é uma comédia poderosa, com o humor de Sacha Baron Cohen fluindo sem nenhum freio, o que certamente vai horrorizar a turma mais sensível, não importa o extremo político. A boa comédia, afinal, é a que incomoda. Very nice!
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