David Fincher combina cinema, política e poder no espetacular 'Mank'
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"Cidadão Kane" é indiscutivelmente o filme mais importante da história do cinema. Muito do que entendemos sobre técnicas narrativas, sofre o ofício de contar uma história em celuloide, começou com Orson Welles, então um prodígio fazendo seu caminho em Hollywood, em seu filme de estreia, já como astro, autor, produtor e diretor.
A origem das histórias, entretanto, nem sempre segue um script linear. No caso de "Kane", sua paternidade foi o foco de uma batalha nos bastidores que ainda reverbera no modo de criar filmes em Hollywood. De um lado, o prodígio deixando sua marca. Do outro, um roteirista que equilibrava-se no sistema dos estúdios, entre sua genialidade e seus vícios, que enxergou na oportunidade de trabalhar com Welles uma forma de exorcizar seus próprios demônios.
Foi uma história que fascinou o jornalista e escritor Jack Fincher, que nos anos 1990 decidiu colocá-la no papel. Mas "Mank", que finalmente foi materializado por seu filho, David, não versa apenas sobre "os bastidores de Hollywood", tampouco sobre "a criação de uma obra-prima". É, acima de tudo, sobre poder, frustração, política - e sobre como sobreviver a tudo isso.
Em fevereiro de 1942, "Cidadão Kane" chegou à cerimônia do Oscar com nove indicações para a estatueta dourada. Levou apenas um prêmio, o de melhor roteiro original, dividido por Herman Mankiewicz e por Orson Welles, então um prodígio que ainda não chegara aos 30 anos, diretor, produtor e astro de "Kane". À época eles já não se falavam, uma contenda que os anos transformaram em uma das histórias mais incendiárias em Hollywood.
Pula para os anos 1990. David Fincher, então um prodígio por mérito próprio, deixou de lado uma carreira dirigindo comerciais e vídeos musicais para gente como Madonna e George Michael, abraçando o cinema em tempo integral. Depois de um começo trôpego com "Alien 3", ele ganhou sua independência com o sucesso de "Se7en".
Ele estava finalizando "Vidas em Jogo", com Michael Douglas, mas seu olhar estava no passado. Mais especificamente na gênese de "Cidadão Kane", no choque entre Welles e Mankiewicz, nos conflitos com a era de ouro de Hollywood como pano de fundo. O filme, "Mank", era roteiro de seu pai, Jack Fincher. Mas a insistência do diretor em rodar em preto & branco, com uma preocupação estética particular, não encantou os donos do dinheiro.
Fincher, então, colocou "Mank" na gaveta. O roteiro ainda precisava ter arestas aparadas, e algumas sequências que fugiam do foco cinematográfico o incomodavam. Jack Fincher morreu em 2003. David Fincher somou prestígio ao sucesso em filmes como "Clube da Luta", "A Rede Social" e "Garota Exemplar". O cinema, como acontecera nos anos 1930, experimentou uma nova mudança. E "Mank" finalmente deixou de ser uma ideia.
Que abraçou o conceito de Fincher para "Mank" foi a Netflix, que nos últimos anos tem se posicionado mais e mais não como uma plataforma de streaming, mas como um estúdio aberto ao desenvolvimento criativo, à ousadia, aos gênios modernos.
Foi assim que Alfonso Cuarón realizou seu "Roma". E foi pela Netflix que "O Irlandês", de Martin Scorsese, finalmente deixou os abismos do desenvolvimento cinematográfico para ganhar vida como um épico moderno. Enquanto os grandes estúdios apostam cada vez mais na segurança das grandes propriedades intelectuais, a Netflix quer correr antes de aprender a caminhar. A estratégia tem dado certo.
Essa mudança dentro da indústria do cinema, que foi intensificada em 2020 com a pandemia do coronavírus, espelha de certa forma a época em que "Mank" é ambientado. Mais ainda: parte do roteiro de Jack Fincher lida com as ramificações políticas do jogo do poder entre os grandes estúdios nos anos 1930 e 1940. O que parecia gordura a ser eliminada se o filme existisse perto da virada do século, hoje torna-se um de seus aspectos mais urgentes, quase premonitórios.
No centro de todas as mudanças estava Herman Mankievicz. Escritor, crítico teatral e, durante um período, chefe dos roteiristas na Paramount, consertando inúmeros scripts sem receber o crédito devido. O cinema saltava de sua fase muda para o som, e manter um roteirista habilidoso com estrutura narrativa e confecção de diálogos era um bom negócio.
Ao fim dos anos 1930, Mank estava quase falido, quebrado por conta de seu vício em álcool e jogos, equilibrando-se na estrutura dos estúdios. Quando Welles o procurou para desenvolver uma trama para sua estreia, ele agarrou a oportunidade com fúria. Ao longe de semanas, isolado no deserto californiano para convalescer de um acidente automobilístico, ele criou o que seria "Cidadão Kane".
Gary Oldman, em mais uma performance histórica, dá a Mankiewicz um equilíbrio delicado entre vitalidade e decadência - alguém que entende sua situação precária, mas nem todo o peso de uma vida desregrada consegue desligar sua sagacidade e palavras afiadas. Oldman atinge esse equilíbrio à perfeição, elevando o jogo de todo o elenco.
É com ele que duas atrizes entregam o trabalho de suas carreiras. Lily Collins surge irreconhecível como Rita Alexander, secretária contratada para datilografar as palavras de Mank, e termina como sua confidente. Isolados em um hotel no deserto, ela e o roteirista criam uma simbiose sob tensão, com Rita entendendo os limites de Mank e mantendo sua conexão com a realidade.
A outra é Amanda Seyfried. Ela surge como se saísse de uma máquina do tempo no papel de Marion Davies, musa do cinema mudo que encontrou no magnata da mídia William Randolph Hearst (o colossal Charles Dance) seu porto seguro. É com ela que Oldman tem seus diálogos mais espontâneos, e é com ela que Mank encontraria o centro narrativo de "Cidadão Kane".
A amizade de Mankiweicz e William Hearst prosperou ao longo da década de 1930, com o roteirista e sua esposa sempre presentes nas festas opulentas bancadas pelo magnata em seu castelo em Los Angeles. O tempo alimentou a frustração em Mank, e sua língua ferina, potencializada pela bebida, o fez ser banido do convívio de Hearst.
Por isso é difícil duvidar da paternidade de "Cidadão Kane". Embora o filme seja fruto da genialidade de Orson Welles (que surge aqui em cenas breves, defendido pelo ator Tom Burke), a história deixou claro que Mank usou sua criação como avatar para Hearst. Este ficara tão furioso com o filme que baniu qualquer menção a ele ou a Welles em sua rede de jornais.
Fincher foi inteligente em não transformar "Mank" em um embate entre Welles e Mankiewicz. Em seu lugar, ele usa esse recorte de história hollywoodiana para mostrar que um mundo em constante renovação termina, muitas vezes, girando em círculos.
Essa é a genialidade em "Mank". Assim como "Kane", o filme de Fincher entrecorta presente e passado, e aos poucos entendemos a dimensão do homem que era Mankiewicz. Mas ele vai além, colocando sua relação com Hearst e depois com Welles como espelho para mudanças que a indústria atravessava, assim como o mundo sob o qual ela se erguia.
Por isso "Mank" é feliz ao expandir seus personagens aos chefes de estúdio da época, notadamente Louis B. Mayer e Irving Thalberg, cabeças da poderosa MGM. O clima político da época, com a disputa para o governo da Califórnia, em que o candidato republicano (o status quo) era o preferido dos executivos para "deixar as coisas como estavam", e o emergente democrata (o socialista) visto como "agitador", poderia estar na CNN de 2020. Se pensarmos bem, meio que esteve...
Toda essa massa política e social, essencial para potencializar uma cidade em mutação, é costurada por Fincher na narrativa de "Mank" como parte do poder renovador de "Cidadão Kane". É como se a inovação técnica e visual promovida por Welles tivesse marcado não só a indústria, mas também toda a sociedade erguida em torno dela.
Para deixar seu filme como um simulacro da realidade ainda mais profundo, David Fincher rodou "Mank" com as mesmas técnicas desbravadas por Welles décadas atrás. A trilha de Trent Reznor e Atticus Finch foi executada com instrumentos da época. A montagem de Kirk Baxter espelha o estilo dos clássicos da RKO e MGM. A fotografia de Erik Messerschmidt imprime um brilho opaco ao preto e branco, ecoando o cinema noir da era de ouro.
Tudo isso faz com que "Mank" não pareça fruto de 2020, e sim uma pérola perdida nos cofres dos grandes estúdios, redescoberta agora como uma cápsula do tempo. Isso vai além do apuro visual, atingindo também estrutura narrativa e também as performances. A sessão dupla com "Cidadão Kane" aumenta ainda mais seu impacto - mas aconselho assistir a Welles depois de visitar o mundo de Fincher.
Mank, recriado por um Gary Oldman confortável em seus extremos, olhava para o futuro mas não viveu para vê-lo. Sua história - ou pelo menos uma fração dela - ganha agora a eternidade com o trabalho de um gênio moderno, um cineasta obcecado pela perfeição que também joga pelas próprias regras. E que o Oscar, reconhecimento máximo de seus pares, ainda lhe fuja ao alcance.
Talvez por isso David Fincher tenha sido a pessoa perfeita para biografar a colaboração de Mankiewicz e Welles, dois gênios à sua maneira. "Mank" pode ter demorado algumas décadas para passar de ideia a filme completo, e isso custou a Jack Fincher o prazer de ver suas palavras traduzidas em som e imagem por seu filho.
Assim como "Cidadão Kane", "Mank" é fruto de um legado. E neste momento em que a experiência cinematográfica pode se deslocar quase que totalmente das salas de cinema para as plataformas de streaming, essa parceria de visionários com a Netflix pode se tornar um marco de igual importância para a história do cinema.
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