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Roberto Sadovski

Chadwick Boseman e Viola Davis elevam o correto 'A Voz Suprema do Blues'

Viola Davis transcendental como Ma Rainey em "A Voz Suprema do Blues" - David Lee/David Lee/Netflix
Viola Davis transcendental como Ma Rainey em 'A Voz Suprema do Blues' Imagem: David Lee/David Lee/Netflix

Colunista do UOL

29/12/2020 18h00

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Poucas coisas no cinema são tão complexas quanto adaptar uma peça de teatro. O palco tem, por regra, uma dinâmica direta com a plateia, que por sua vez acompanha a ação por um único ponto de vista. No cinema a câmera precisa, também por regra, ser fluida, adicionando movimento ao texto. É quando o projeto precisa de um elenco superlativo para ir além de suas limitações, abraçando a pureza dos diálogos e a entrega de seus intérpretes. "A Voz Suprema do Blues" é o exemplo perfeito de como fazer tudo certo.

O triunfo, claro, tem nome. Um, não, dois: Viola Davis e Chadwick Boseman. São eles que ancoram a narrativa que adapta a peça de August Wilson, e é em seu entorno que o resto do elenco eleva seu jogo. São interpretações sofridas, que trazem uma bagagem atrelada à tradição, história, legado e música. "A Voz Suprema do Blues" é um microcosmo que condensa biografia, racismo, sexualidade, respeito e combate às desigualdades. Tudo embalado em um contexto histórico que escancara, com dor e sofrimento, a luta do povo negro em fincar seu espaço na sociedade americana por força de seu talento.

Sob o holofote, como não poderia deixar de ser, está Viola Davis. Verdadeira força da natureza, a atriz oscarizada como coadjuvante por "Um Limite Entre Nós" assume aqui o papel de Ma Rainey, a "Mãe do Blues", cantora que nos anos 1920 encabeçou a primeira geração de artistas a gravar blues, fazendo também a ponte da teatralidade do vaudeville com a expressão emocional do verdadeiro blues, canção surgida da dor - como toda boa música, diga-se.

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Chadwick Boseman em seu último papel em 'A Voz Suprema do Blues'
Imagem: Netflix

"A Voz Suprema do Blues" a captura em um recorte, uma tarde quente em Chicago quando ela se reuniu com sua banda para uma gravação. O estúdio é o cenário onipresente, palco de tensão em um crescendo. Ma batia de frente com seu agente (um homem branco), com o dono do estúdio (outro homem branco) ao impor suas condições e seu valor. Acima de tudo, ela encontrou em seu trompetista, Levee Green, outra força irremovível, um jovem negro com ideias vibrantes e vontade de vencer em um mundo que insistia em lhe colocar no chão. Um trabalho exemplar de Chadwick Boseman.

Existe uma força em Boseman sugerida ao longo de sua carreira, mas que aqui encontra escoamento dramático brutal em sua honestidade. E nem falo dos monólogos que definem seu personagem - momentos em que ele escancara a origem de sua fúria e os momentos que sublimaram sua infância e o tornaram adulto aos 8 anos de idade. O que surpreende é a entrega, o equilíbrio entre a euforia e a tempestade que explode por trás de seus olhos.

Nas mãos de Boseman, Levee é uma mola tensionada, disparando aos poucos. Quando ele, por exemplo, explica sua visão musical a Cutler (Colman Domingo), líder da banda de Ma Rainey. Um pouco mais ao discorrer sobre os sapatos novos que ele acabou de comprar com o pagamento de uma semana inteira. Ao lembrar-se de sua mãe, vítima de violência sexual por invasores brancos quando ele era criança. Ou quando ele se engraça com Dussie Mae (Taylour Paige), amante de Ma. A clareza de sua personalidade é revelada aos poucos, encapsulando em um corpo a luta de um povo inteiro.

Essa mistura de força e fragilidade exposta em Levee é acentuada quando lembramos que Chadwick Boseman, aqui em seu último papel, filmou em estágio acentuado de câncer. Ele não deixou que a doença definisse sua vida e sua carreira, e entrega aqui uma performance plena, fascinante, que encontra perfeito equilíbrio com o trabalho de Viola Davis como Ma Rainey. São dois atores no auge de sua habilidade emprestando credibilidade e verdade a um filme não teria o mesmo impacto com profissionais menores.

Até porque "A Voz Suprema do Blues" não tem muito a oferecer além do talento monstruoso de seu elenco. Entende-se a opção de um recorte no teatro, com todas as suas limitações. Mas a vida de Ma Rainey, riquíssima, um retrato não só das origens da música americana como também das tensões raciais enfrentadas por artistas não brancos, merecia um filme mais abrangente. Não é, obviamente, a proposta do diretor George C. Wolfe, que merece louros por construir uma encenação tão precisa de uma época e não perder o foco do principal em sua história.

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George C. Wolfe dirige Viola Davis e Chadwick Boseman em "A Voz Suprema do Blues"
Imagem: Netflix

Enxerga-se, também, o dedo do produtor Denzel Washington. Ele trabalhou com Viola Davis justamente em "Um Limite Entre Nós", que ele próprio dirigiu a partir de uma peça do mesmo August Wilson de "Ma Rainey". Washington entende não só o poder das histórias, mas também da entrega do elenco ao ter em mãos um texto tão poderoso e tão próximo de seu próprio legado.

Não é fácil transformar uma peça de teatro em filme. Polanski o fez com Jodie Foster e Kate Winslet no sufocante "Deus da Carnificina". Michael Sheen e Frank Langella repetiram seus papéis do palco quando Ron Howard adaptou o brilhante "Frost/Nixon". "A Voz Suprema do Blues" pode não trazer os dilemas modernos do primeiro ou a precisão cirúrgica do segundo. Mas consegue, com Chadwick Boseman e Vila Davis, transcender as amarras de uma simples cinebiografia. Tudo embalado com o poder da música.