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Novo 'Liga da Justiça' é mero capricho que melhora (só um pouco) o original
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A versão do diretor Zack Snyder para "Liga da Justiça" é melhor que o filme feito de qualquer jeito e lançado nos cinemas em 2017. O que não quer dizer muita coisa: pinte uma parede, assista à tinta secar e será programa mais divertido que aturar a aventura finalizada à época por Joss Whedon.
O novo filme, uma peça de marketing que custou US$ 70 milhões para alavancar a plataforma HBO Max, é uma vitória, sim, de Zack Snyder. É o caso raríssimo em que um diretor, retirado de sua obra por motivos diversos, consegue restaurá-la seguindo sua visão original. Um feito e tanto.
É, também, um imenso pastel de vento. Batendo em 4 horas de duração (que às vezes parecem o dobro), o novo "Liga da Justiça" não é nem um filme, muito menos uma série: é um capricho, uma egotrip inchada com cenas que normalmente ficariam no chão da sala de edição. É uma história ruim esticada à exaustão. É, por fim, um filme 100 por cento de Zack Snyder, com todas as câmeras lentas e as cores opacas que vem no pacote.
Os bastidores do famigerado "Snyder Cut" já viraram lenda em Hollywood. Depois da recepção fria a "Batman vs. Superman", o estúdio queria que Snyder fizesse um filme menos sorumbático e mais solar, de olho no sucesso arrebatador do universo de heróis da concorrência. Uma tragédia freou o impasse: a morte trágica da filha do diretor. Snyder ainda tentou se jogar no trabalho mas terminou por afastar-se.
A solução foi chamar outro cineasta para completar o trabalho: Joss Whedon, que assinou dois "Vingadores" e parecia talhado para a tarefa. Mas era um elefante branco. Os executivos decidiram não mexer na data de lançamento (ninguém queria perder o bônus do ano fiscal), e Whedon reescreveu e refilmou o material deixado por Snyder de olho no calendário.
Raramente um projeto emerge ileso de uma situação caótica, e "Liga da Justiça" chegou aos cinemas como um Frankenstein, um arremedo de história dividido por tons narrativos diferentes, em que a estrutura narrativa sóbria arquitetada por Snyder entrava em choque com a injeção de humor e aventura proporcionada por Whedon.
Ninguém ficou feliz, "Liga da Justiça" foi um fracasso e as ideias de Zack Snyder para um universo compartilhado viraram pó. Os fãs, porém, não se conformaram, e nos anos seguintes passaram a exigir que o estúdio lançasse a versão original do diretor, que eles acreditavam estar acumulando poeira em algum depósito. A hashtag #ReleasetheSnyderCut fez barulho, inclusive entre o elenco.
A essa altura, Snyder já havia passado seu período de luto e guardava em seu computador um corte bruto do que seria sua "Liga da Justiça". Veja bem, não havia uma versão de seu filme, e sim um rascunho incompleto. Mas foi o que bastou para que o estúdio, em busca de promover sua nova plataforma de streaming, aproveitasse o marketing gratuito e, ao mesmo tempo, fizesse as pazes com o diretor. Snyder ganhou, então, tempo e dinheiro para finalizar sua obra.
É ingenuidade acreditar que foram os fãs que fizeram com que este "Liga da Justiça" se tornasse real. Quando muito eles serviram de mão de obra gratuita a uma empresa que enfrenta um mercado forrado de propriedades intelectuais e que, mesmo assim, não conseguiu com que seus produtos decolassem a contento. O que moveu a engrenagem aqui foi única e simplesmente a força do dinheiro.
Snyder, que não recebeu para retomar seu filme, teve total liberdade criativa. Ele aproveitou para seguir o caminho de Peter Jackson com "O Hobbit": sem a certeza de que retornaria a este mundo, tratou de colocar tudo e a pia da cozinha no pacote. O resultado é um trambolho de 4 horas que mostra muito e diz pouco.
A estrutura da coisa toda é a mesma do filme de Joss Whedon. Com a morte do Superman (Henry Cavill) ao fim do filme anterior, o Batman (Ben Affleck) e a Mulher-Maravilha (Gal Gadot) precisam montar uma equipe para combater um inimigo milenar que se dirige à Terra. Aos trancos eles recrutam Aquaman (Jason Momoa), o Flash (Ezra Miller) e o Cyborg (Ray Fisher).
O vilão, o Lobo da Estepe (Ciarán Hinds, mas podia ser qualquer um), vem ao planeta em busca de três caixas maternas, dispositivos que, ativados, trazem um rastro de destruição que antevê a chegada do conquistador Darkseid, derrotado milênios antes. Aos heróis sobra a missão de a) não deixar que as caixas caiam nas mãos dos vilões e b) ressuscitar o Superman para ter alguma chance de vitória.
As versões de Zack Snyder e Joss Whedon diferem nos detalhes. A cena inicial do filme de 2017, com o Batman enfrentando um parademônio (capangas genéricos do Lobo da Estepe), sumiu. A família russa ameaçada no clímax? Puf! A tensão entre Batman e Mulher-Maravilha também foi para o espaço. Já Darkseid, que surge como um Thanos feito com uns trocados, é uma construção digital com poucas cenas para justificar seu protagonismo.
Esse é, por sinal, o maior problema da versão de Zack Snyder para "Liga da Justiça". As novas cenas em nada acrescentam à história, só deixam seu ritmo mais lento. Vale para o Flash salvando Iris West (Kiersey Clemons) de um acidente de trânsito (tire do filme e em nada muda a trama). Vale para a revelação que o general Swanwick (Harry Lennix), zanzando pelos filmes desde "O Homem de Aço", é na verdade o super-herói Caçador de Marte (tire do filme e em nada muda a trama).
Victor Stone, o Cyborg, recupera toda sua origem, limada na versão de Whedon. Entende-se, porém, a decisão em diminuir o protagonismo do personagem: Ray Fisher tem o carisma de uma manga, um ator com zero expressividade, que em nenhum momento transmite o peso da tragédia que roubou parte de sua humanidade. É um desperdício que trava qualquer conexão com alguém que tem papel fundamental na história.
Esse é, por sinal, um problema recorrente do cinema de Zack Snyder. Aclamado como "visionário", ele é um esteta visual ímpar, e "Liga da Justiça" é um produto belíssimo. Mas não espere empatia por nenhum de seus personagens. Eles são rasos feito um pires, sendo impossível criar qualquer conexão emocional. Não existe nenhum senso de perigo, nada parece estar em risco. Tudo parece calculado, nada parece feito por seres humanos. "Liga da Justiça" traz a eficiência e a frieza de uma máquina.
Criar um universo compartilhado com personagens tão fantásticos não significa que eles devam abandonar a coerência. O Superman voltar com seu traje preto, por exemplo, não faz o menor sentido narrativo a não ser o compromisso com a estética "sombria" de Snyder. Como quase todo traço de humor desaparece nessa versão - e humor é fundamental para a fluidez de qualquer filme em qualquer gênero -, às vezes parece que estamos vendo uma paródia que brinca com o tom exageradamente sério da trama.
Já o famigerado epílogo com o Coringa (Jared Leto, que devia estar com algum boleto atrasado) é apenas confuso, porque sugere uma continuação para a qual não existem planos. É mais uma demonstração do ego de Snyder, que agita seus seguidores com promessas que dificilmente serão realizadas. Mas, olha só, a hashtag "RestoretheSnyderVerse já é popular entre os fãs! A existência do "Snyder Cut" prova que, quando o dinheiro manda, tudo é possível.
Se existem bons momentos a ser saboreados, todos estão no caminho para o clímax. A volta do Superman tem uma explicação pseudo científica que faz mais sentido, deixando a decisão dos heróis menos macabra. O combate com o Lobo da Estepe na Rússia justifica, em partes, a classificação para menores de 18 anos que o filme recebeu. A volta do Superman acontece em um crescendo, uma construção dramática mais empolgante do que o "opa, voltei" da aventura de 2017.
Mas é pouco para justificar tanto investimento e tanto holofote. Zack Snyder manteve sua integridade como autor, insistindo inclusive num ultrapassado formato de tela 4:3, quadradão, mesmo sabendo que o mundo veria numa TV widescreen. "Liga da Justiça" fica como testamento tanto de seus excessos quanto de seu compromisso sem concessões com sua visão.
Pelo menos não dá mais para perceber o bigode bolerão borrado em CGI que o Superman usou no filme de 2017. É um avanço!
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