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'O Legado de Júpiter': Como a Netflix criou seu universo de super-heróis
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"O Legado de Júpiter" é a primeira série da Netflix baseada nos personagens criados por Mark Millar. Mas não é a primeira experiência do autor fora das páginas dos gibis. O escritor escocês de 51 anos saltou do papel para o cinema em 2008 quando "O Procurado" virou um filme com Angelina Jolie, James McAvoy e Morgan Freeman.
Nada mal para um sujeito que só queria mesmo escrever histórias de super-heróis. Conseguiu. Aos 18 anos, com o festejado Grant Morrisson como seu mentor, Millar publicou suas primeiras histórias. Um punhado de quadrinhos independentes chamou a atenção dos gigantes do mercado, e logo ele estava trabalhando ora para a DC, ora para a Marvel.
Daí a coisa ficou séria. Depois de criar a excepcional série "Superman: Entre a Foice e o Martelo", Millar mudou o jogo na Marvel ao lançar "Ultimate X-Men" como parte de uma nova série da Marvel fora da cronologia tradicional, e foi além ao reinventar os Vingadores como uma máquina de combate quase militarizada em "Os Supremos" - que inspirou a versão da equipe no cinema.
Na Casa das Ideias ele criou o campeão de vendas "Guerra Civil" em 2006 (que uma década depois seria inspiração para o terceiro filme do Capitão América), e três anos depois entregou a aventura distópica "O Velho Logan" (que inspirou "Logan", despedida de Hugh Jackman como Wolverine). Ainda achou tempo para escrever o polêmico "Trouble", inédito no Brasil, uma aventura sobre gravidez na adolescência protagonizada por May Parker, anos antes de sequer sonhar em ser tia do Homem-Aranha.
A essa altura o autor já se dedicava a personagens próprios, aglutinados sob o selo Millarworld. Além de "O Procurado", foi ali que Millar entrou de vez nos quadrinhos independentes, dividindo a autoria igualmente com o artista que desenhava suas criações. "Nêmesis", "Superior", "Supercrooks", "A Ordem Mágica" e "Prodígio" mostraram sua proficiência como autor. Já "Kick-Ass" e "Kingsman" saíram direto das páginas dos quadrinhos para as telas do cinema.
O que nos leva a "O Legado de Júpiter". Com arte de Frank Quitely, é uma história de super-heróis pouco convencional, escolhida para inaugurar a nova fase da Millarworld, que foi comprada pela Netflix como celeiro de ideias e ponto de partida para seu próprio universo. É o gigante do streaming abraçando o movimento que hoje norteia a cultura pop.
Em vez de descansar na praia, Mark Millar ganhou o emprego de presidente da Millarworld e agora ajuda a traduzir suas criações em entretenimento de carne e osso. Foi com ele que eu bati o papo a seguir sobre Stan Lee, filmes ruins, bebida e, claro, a estreia de "O Legado de Júpiter".
Oi, Mark. Tudo bem?
Tudo ótimo, tudo ótimo. Eu tenho conversado com muitos brasileiros! Eu não fazia ideia que o Brasil tinha tantos fãs de quadrinhos, acho incrível! Eu sou amigo de alguns artistas brasileiros brilhantes, como Rafael Grampá e Rafael Albuquerque. Eles vivem dizendo para eu ir a uma das convenções que acontecem aí, é questão de tempo!
Por coincidência hoje é aniversário do Grampá!
Sério? Vou mandar um e-mail e fingir que lembrei... (risos)
Suas séries em quadrinhos estão todas à disposição da Netflix. Por que vocês escolheram justamente "O Legado de Júpiter" como a primeira a ser adaptada para o streaming?
O que aconteceu foi que vendemos a empresa para a Netflix, da mesma forma que a Marvel foi vendida para a Disney, então eles se tornaram donos de tudo da Millarworld. Não foi um licenciamento, então mesmo se eu fosse atropelado por um ônibus amanhã a Netflix seria dona para sempre. Daí eles me ofereceram um emprego, já que eu fiquei desempregado e estava pensando em relaxar na praia. (risos) A oferta foi uma posição executiva na Netflix para tocar o Millarworld, o que eu achei ótimo! A primeira coisa foi olhar para as vinte séries que eles tinham comprado e escolher um projeto, já para marcar território, para mostrar que podemos competir com qualquer um, em escala, em orçamento e em espetáculo. "O Legado de Júpiter" meio que preenchia todos os requisitos. Eu adoro super-heróis, e de todas as histórias de super-heróis que eu escrevi essa é minha favorita.
Existem algumas diferenças com a série em quadrinhos. Os temas são os mesmos mas a trama segue um novo caminho...
Ah, se você leu os quadrinhos já sabe o quanto essa história fica louca! Tem o crescimento da decepção de Brandon com seu pai, alguém sussurrando em seu ouvido, e sabemos o que vem em seguida. A gente vai fundo, como em "Game of Thrones".
Como foi o processo de compartilhar suas ideias com a equipe de roteiristas e com (o showrunner) Steven S. DeNight?
A primeira coisa que eu pedi à Netflix foi trazer Steven DeKnight. Minha série favorita dos últimos cinco anos foi a primeira temporada de "Demolidor", e eu não conseguia pensar em mais ninguém para tocar "Júpiter". Ele trouxe uma mala cheia de ideias, e de cara apontou que, se a gente entrasse muito rápido na trama dos quadrinhos, se formos direto para aquela história - e você sabe o que acontece -, corremos o risco de deixar tudo muito complexo para quem não é fã dos gibis. As primeiras oito páginas da primeira edição e as primeiras seis páginas da segunda edição mostra a expedição para a ilha, e Steven apontou que aquilo seria uma porta de entrada perfeita para o público que não é versado na trama. Então metade de cada episódio da primeira temporada é um flashback sobre essa trama, que humaniza os personagens e ajuda a criar uma conexão com cada um. Então o trabalho foi pincelar momentos assim e expandi-los. Nada foi perdido, nenhuma linha dos quadrinhos foi desperdiçada. E não usamos no sentido de esticar a trama por oito episódios, e sim elaborar a história para que os personagens pudessem ser melhor desenvolvidos em sua complexidade, ficando com mais personalidade do que nos quadrinhos.
Até a virada do século, super-heróis fora das páginas dos gibis, fosse no cinema ou na TV, não eram exatamente relevantes. Depois do primeiro "X-Men", em 2000, a coisa tomou fôlego e hoje super-heróis são a espinha dorsal do entretenimento. É importante o público conhecer a linguagem dos super-heróis para abraçar a desconstrução promovida por "O Legado de Júpiter"?
Algumas coisas aconteceram. A primeira é que os fãs de quadrinhos dos anos 1980, aqueles mais fervorosos, que leram "Watchmen" e "Batman - O Cavaleiro das Trevas", sujeitos como eu, da minha idade, de repente se tornaram produtores, chefes de estúdio e diretores. Então a gente queria pegar as histórias de Alan Moore, Frank Miller e Bill Sienkiewicz e traduzi-las para o cinema. A outra coisa é que os efeitos especiais alcançaram esse tipo de história, porque imagine o desastre que seria se "Vingadores: Ultimato" tivesse sido feito nos anos 1970! A tecnologia precisa existir para traduzir as histórias. Por fim, os produtores se deram conta, depois de trazer Bryan Singer em "X-Men" e Sam Raimi em "Homem-Aranha", que diretores excelentes mudam o jogo.
"Batman" deu início a uma enxurrada de filmes de super-heróis ainda nos anos 1990...
Mas mivemos poucos filmes de super-heróis bons nos anos 1990 porque os diretores geralmente eram muito ruins. Nos lembramos de Tim Burton fazendo "Batman" porque foi incrível! Antes disso foi Richard Donner fazendo "Superman". Somamos então décadas e décadas de filmes horríveis - e olha que eu gosto até dos ruins porque eu sou fã de super-heróis! (risos) Demorou então para os produtores perceberem que os bons filmes vinham de bons diretores, que respeitavam o material e fazem seu trabalho bem. Isso não é só um trampo, é paixão. Sam Raimi adora o Homem-Aranha de Stan Lee e Steve Ditko, e essa paixão está em cada minuto do filme. A Marvel entende essa equação perfeitamente, e são extremamente rígidos com quem eles escolhem. Como presidente da Millarworld eu não deixo ninguém que não goste dos personagens encostar neles.
Faz um tempo desde que você meteu a mão na caixa de brinquedos alheia. Você sente falta de escrever histórias para Wolverine ou o Homem-Aranha?
Às vezes, mas quer saber? Foi Stan Lee quem me convenceu a mudar. A gente estava em uma ligação, acho que em 2003, e ele disse que eu me daria muito bem se criasse meus próprios personagens. Eu disse que nunca tive esse interesse, nunca entendi o apelo. Eu comecei a escrever quadrinhos porque queria trabalhar com a DC e com a Marvel. Eu nunca inventei personagens, nem quando era criança! Stan então insistiu para que eu tentasse, porque eu reinventava tanto os heróis que não seria muito difícil fazer algo meu. No dia seguinte eu comecei a escrever "O Procurado", e meses depois já tinha feito um acordo para transformar o gibi em filme. Era loucura, mas Stan estava certo. E quando Stan Lee lhe diz para você fazer algo, você faz! (risos) Eu escrevi todos os personagens da Marvel e da DC que eu queria. Escrevi Superman, que é meu favorito. Batman, os Vingadores, X-Men, Homem-Aranha, Wolverine. Stan disse que a cultura só caminha para frente quando fazemos coisas novas, e não voltando às coisas velhas. Foi isso que eu senti quando passei a cuidar de meu próprio material.
"Nêmesis" está sendo desenvolvido como filme, assim como "Superior" e "Supercrooks". Joe Cornish está trabalhando em "Starlight". E você tem essa vastidão de gibis da Millarworld que podem virar filmes ou séries na Netflix. Temos alguma chance nessa vida em ver uma série na Disney+ baseada em "Trouble"?
(gargalhadas) Eu acho que o mundo não está pronto para isso! O engraçado é que a Marvel me pediu para escrever essa série como um favor, se eu não estaria interessado em fazer uma história com a tia May quando adolescente. Na época ela era mostrada como uma senhora de, sei lá, uns 80 e poucos anos, então o conceito era totalmente pirado. Ninguém jamais pensaria em colocar uma atriz mais jovem nos filmes, e agora temos Marisa Tomei no papel... Mas eu não acho mesmo que o mundo esteja pronto para "Trouble". (risos) Mas a ideia não é ruim!
Mark, espero que você possa vir ao Brasil quando passar toda essa loucura que estamos vivendo...
(interrompendo) Se eu for você me paga uma bebida? (risos) É tudo que eu preciso!
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