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Exclusivo: como Kevin Smith reinventou (e melhorou!) "Mestres do Universo"
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"Mestres do Universo: Salvando Eternia" já chegou fazendo barulho. Nova versão do desenho animado que embalou a infância de muita gente nos anos 1980, a série foi repaginada para o século 21 e conseguiu o feito de enfurecer uma fração de sua base de fãs. Até aí, nenhuma surpresa.
Sempre que uma propriedade intelectual infantil que fez sucesso décadas atrás ganha um novo verniz, os fãs mais radicais ("desocupados", eu diria) sobem o coro dos insatisfeitos. No caso de "Salvando Eternia", o choro concentra-se na protagonista. Nos primeiros cinco episódios, é a guerreira Teela, e não o crossfiteiro He-Man, que surge em primeiro plano.
Tudo faz parte da história tecida por Kevin Smith, escolhido para encabeçar o projeto. O cineasta é uma espécie de embaixador da cultura pop/nerd/geek no mainstream. Desde que começou sua carreira em 1994 com "O Balconista", ele se colocou como defensor dos super-heróis e das histórias em quadrinhos para um público que ainda achava que era "coisa de criança".
"Barrados no Shopping", "Procura-de Amy" e "Dogma" trouxeram elementos do gibi para o cinemão, com Smith por fim escrevendo quadrinhos - ele tem passagens incríveis por "Demolidor" e "Arqueiro Verde" - e dirigindo episódios de séries como "The Flash" e "Supergirl". Além de ter forte presença no mundo virtual, com podcasts e canais no youtube.
"Mestres do Universo: Salvando Eternia" é a continuação lógica de seu trabalho. Logo na largada, Smith torce os elementos familiares da série ao avesso. A magia é banida do mundo de Eternia, palco das aventuras. Personagens morrem. O status quo é balançado. O novo "Mestres do Universo" trata justamente de recuperar esse equilíbrio, ressaltando a jornada individual de cada personagem.
Nas mãos de Smith, a nova série é, sob todos os aspectos, infinitamente superior ao desenho original - que, convenhamos, era bem ruim. Produzido pela Filmation em 1983, a animação existia com o único propósito de vender brinquedos. Era uma peça de propaganda, um material de marketing. As tramas, portanto, eram rasas, mirando um público pré-escolar com seus personagens coloridos e suas histórias que terminavam com uma lição de moral.
Mas, olha, foi um sucesso. A ação entrelaçada no gênero espada e feitiçaria, embalada com uma pitada de ficção científica, acertou em cheio o zeitgeist. Mas não havia nenhuma substância - ao menos não no desenho. Na linha de brinquedos, porém, a mitologia dos heróis de Eternia era, paradoxalmente, muito mais rica.
Para enriquecer a imaginação da criançada, os brinquedos originais, lançados em 1982, um ano antes do desenho, traziam mini gibis encartados em sua embalagem. Com texto de Donald Glut e arte de Alfredo Alcala, famoso por trabalhar com o bárbaro Conan, as HQs mostravam He-Man como um guerreiro sobrevivendo a uma guerra em seu mundo, uma fenda interdimensional que trouxera as forças do Esqueleto para Etérnia. Havia, de fato, uma história!
Quando a Filmation assumiu a produção do desenho animado, essas histórias foram simplificadas, e a violência, mesmo de mentirinha, foi totalmente limada. Para "Mestres do Universo: Salvando Eternia", por sua vez, Kevin Smith usou os gibis como ponto de partida, desenvolvendo uma trama que confere a seus personagens mais personalidade, injetando na série um propósito narrativo, coisa que ela nunca teve.
Essa história circula em torna da queda do maior herói de Eternia, dos escombros deixados por sua derrota, e de uma parceira que precisa acertar as contas com o passado, atropelando a própria mágoa, para recuperar a magia no mundo, salvando-o da extinção. No meio tempo, a sombra de Esqueleto e seus aliados ameaça essa jornada.
A saga de He-Man nunca foi melhor abordada do que em "Mestres do Universo: Salvando Eternia", que surge com o propósito criativo e comercial de recuperar a marca, mantida viva com aparelhos pela força da comunidade de colecionadores. Pelo poder da nostalgia.
Conversei com Kevin Smith, com exclusividade para o Brasil, justamente sobre a longevidade de "Mestres do Universo", que ainda tem "a força" mesmo décadas depois de seu lançamento. Mesmo que alguns marmanjos chorões reclamem, bonequinhos em mãos, que o desenho tem "He-Man de menos".
Antes de mais nada, parabéns por finalmente conseguir tirar "O Balconista 3" da gaveta!
Opa, obrigado! Eu estou na locadora de vídeo de "O Balconista", RST Video. Estamos nos preparando para começar a filmar "O Balconista 3". Levou um minuto, mas finalmente estamos aqui.
A gente já conversou antes, há uns dez anos, durante o lançamento de "Tiras em Apuros" (comédia de ação com Bruce Willis e Tracy Morgan).
Que doido, cara! "Tiras em Apuros" é uma lembrança vagamente distante. Foi na época que eu fui retirado de um avião por ser muito gordo. E também de toda a treta com Bruce Willis. Foi uma época sinistra! (risos)
Mas você está bem agora, certo? De saúde?
Sim, sim. Eu tive um ataque do coração há três anos, mas desde então tudo está normal, perdi muito peso e tal. O ataque do coração foi a melhor coisa que me aconteceu. (risos) Sério, provavelmente salvou minha vida, porque me fez abraçar um estilo mais saudável.
Bom, vamos falar sobre "Mestres do Universo". Qual o segredo que mantém a série tão forte agora em pleno século 21? Por que tanta gente se importa com o desenho?
Acho que o motivo principal é a nostalgia, as lembranças felizes da infância, de uma época mais simples em que a gente chegava da escola, deixava os livros no chão, ligava a TV e se perdia em Eternia por meia hora. Eu percebi nos dois anos em que trabalhamos no desenho que as pessoas gostam de "Mestres do Universo" porque já gostavam quando crianças, é a sensação de uma infância feliz.
Mas só nostalgia basta para alavancar um trabalho assim?
É o ponto de partida. O que muita gente descobre é que os personagens são mais ricos e profundos do que eles lembravam. É uma mitologia bem desenhada, escrita por diversos autores ao longo dos anos. As pessoas que criaram os brinquedos, lançados antes do desenho, tiveram muito cuidado em criar um contexto para os personagens, especialmente nas histórias em quadrinhos que acompanhavam a embalagem de cada boneco. A gente colocou tudo isso na série. Mostramos que a Espada do Poder é dividida em duas, e isso vem da proposta original da Mattel. Então não é só a lembrança de uma época boa, mas também de pedaços de história que já estavam lá. A espada dividida, o equilíbrio entre magia e tecnologia em Eternia. São coisas que usamos mas não criamos, já estava tudo no lugar desde 1981.
Nos últimos anos a marca "Mestres do Universo" foi mantida viva pelo esforço da comunidade de colecionadores. Mesmo assim, o relançamento da série há cerca de duas décadas não decolou. Qual ao diferença da percepção da marca hoje?
Essa produção do Mike Young, que é de 2002, com certeza tinha seu público. Mas não era nada comparado com 1983, quando "Mestres do Universo" vendia 1 bilhão de dólares em brinquedos. Nosso show provavelmente não vai chegar perto disso. Talvez tenha sido o momento errado. O mercado dos brinquedos hoje está reaquecido, e não tem como ignorar esse aspecto comercial. A Netflix tem uma série chamada "Brinquedos Que Marcam Época" que conta a história de como tudo foi criado unicamente para vender brinquedos. Boa parte da história de "Mestres do Universo" tem a ver com a venda de brinquedos. Seus criadores, contudo, não encararam de forma grosseira e se esforçaram para desenvolver a marca criativamente. A gente sabia de cara que boa parte de nosso público estaria na faixa dos 40, 50 anos de idade. Mas a gente também sabia que essa turma ia mostrar a série para seus filhos, esposas, maridos, namorados e namoradas, porque eles querem dividir algo que significou tanto para eles quando criança. É um movimento identitário, como torcer para um certo time. E você tem toda razão: foi a comunidade de colecionadores que manteve "Mestres do Universo" vivo por tanto tempo. Como toda empresa de brinquedos, a Mattel prestou atenção. E o movimento dessa turma foi tão intenso que a Netflix tomou a iniciativa em querer bancar esse revival.
Então o movimento hoje também é comercial.
Claro que é, mas não só isso. Tem esse sujeito na Netflix, nosso chefe, Ted Biaselli, que adorava a série quando criança. Ele me disse que assistia ao desenho e que em todo episódio ele ficava apavorado com a possibilidade de o Esqueleto matar o He-Man. Ted queria assistir a essa versão da série que ele tinha em mente quando criança. Queria ver riscos, queria temer pela vida dos personagens, queria que a história fosse levada a sério. A gente seguiu essas regras, e decidimos fazer exatamente o desenho que as pessoas se lembravam de sua infância, com a diferença que agora os personagens podem se esfaquear. Temos a mesma relação entre os personagens, a mesma linha narrativa, mas no fim do dia as pessoas podem morrer em nossa versão. E eles morrem, muita gente morre nos cinco primeiros episódios.
Eu entendo que trabalhar com um produto com uma base de fãs tão grande nunca é fácil. A turma mais radical fez muito barulho com tentativas recentes de relançar alguns clássicos, como "Thundercats Roar" e o novo "She-Ra". Como você evita atiçar essa fúria e manter alguns elementos tradicionais, ao mesmo tempo em que atualiza "Mestres do Universo" para a plateia moderna?
O que me ajudou foi ter dois chefes que compartilham a mesma paixão por "Mestres do Universo", Ted Biaselli do lado da Netflix e Robert David da Mattel Television. Rob, além de ser um executivo, escreveu a série em quadrinhos de "Mestres do Universo" para a DC nos últimos anos. Eu me senti totalmente seguro para escrever a história certa. É como numa pista de boliche, quando colocam bumpers nas canaletas para, quando as crianças jogarem, garantir que elas sempre acertem um pino. Eu senti que estava jogando boliche com essa proteção. Nunca me preocupei com a base de fãs porque, antes de qualquer ideia ser executada, Ted ou Rob seriam os primeiros a tocar o alarme. Por exemplo, quando eu estava escrevendo o piloto, a Feiticeira saia do Castelo Grayskull como Zoar, sua forma de pássaro, e pousava do lado de fora. Ted logo apontou que não era possível, ela não pode deixar o castelo em forma humana. Mesmo detalhes pequenos assim eram notados. Antes de qualquer coisas chegar aos fãs, bateria neles. E eles queriam que fosse perfeito.
Você dirigiu episódios de "The Flash" e "Supergirl". Deu para matar sua sede para trabalhar com super-heróis, ou você ainda tem uma história do coração que um dia ainda quer adaptar?
Eu sempre achei que o Questão, personagem da DC, daria um filme incrível. Tem estilo de film noir, visualmente é impactante. Mas eu não sou o sujeito ideal para fazer esses filmes. Eu sei fazer filmes do Kevin Smith, que são pequenos e com um monte de gente falando sem parar. Eu sei contar uma história, mas para esses filmes prefiro fazer parte da plateia. "Dogma" talvez seja minha versão de um filme de quadrinhos. Talvez "Mestres do Universo" seja o mais próximo que vou chegar disso. Animação me deixou mais confortável, até porque os riscos são menores. É caro, não me entenda mal, mas não chega perto de um filme de 100 milhões de dólares. Não há tanta pressão ou controle, e eu tive muita liberdade. Se fosse uma adaptação da DC ou da Marvel eu não teria nem uma fração dessa liberdade. Aqui eu estou de boa, como as HQs que eu escrevo. Meu ritmo está nos quadrinhos e na animação. Já o cinema live action eu prefiro que permaneça nas mãos de gente incrivelmente talentosa como Jon Favreau ou os irmãos Russo.
A cultura pop, com quadrinhos e produtos nerd, é hoje a cultura mainstream. Coisas que pertenciam a um nicho hoje são fenômenos globais. Existe alguma chance de a indústria se cansar de tudo isso ou já é um movimento irrefreável?
Talvez chegue o dia em que esse movimento pare de crescer e chegue em um ponto limite. Mas eu não acho que vá desaparecer e nem que a bolha vá estourar. Isso me lembra de esportes quando eu era criança. A cultura do esporte dominava absolutamente tudo. Ninguém falava sobre filmes, mas todo mundo discutia baseball. Os jogos eram levados a sério. Atletas eram levados a sério! Havia a percepção de que eles tinham um trabalho de verdade, não eram um bando de adultos perdendo tempo com jogos. Essa cultura esportiva era muito tribal, com pessoas ardentemente apaixonadas por seus times e por jogadores, a ponto de odiar quem não gosta do que eles gostam. Eu sinto que é exatamente o ponto onde estamos com essa cultura de histórias em quadrinhos. É como o esporte era nos anos 1970, onipresente. Mesmo que você não assista a filmes baseados em gibis, ainda sabe um monte sobre eles. Eu não era fã de esportes quando moleque, mas morava em New Jersey, colado em Nova York, e sabia muito sobre os Yankees. É certo que alguma coisa vai nos substituir como a cultura predominante, mas agora a cultura pop e os quadrinhos se tornaram a cultura dominante. E eu acho ótimo! Se o papo fosse sobre esportes eu não teria emprego.
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