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A violência racial traduz o terror mais brutal em 'A Lenda de Candyman'
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O mundo pop vive em um constante estado de reciclagem. Em meio à avalanche de projetos meramente corporativos, porém, vez por outra surge um exercício criativo verdadeiro para recuperar uma propriedade intelectual. "A Lenda de Candyman", que recupera um filme de terror dos anos 1990, acerta em cheio por um motivo simples: é um filme com algo a dizer.
Não o "filme", claro, mas seus realizadores. Em especial Jordan Peele, que assina o roteiro e produz o novo longa. Ele repaginou o filme de terror moderno com "Corra!", que provocou uma discussão inteligente sobre preconceito racial e apropriação cultural com uma moldura de ficção científica macabra. Seu trabalho seguinte, "Nós", foi mais fundo ao mostrar violência social materializada na fúria contida em cada um de nós.
"A Lenda de Candyman" situa-se mais ou menos entre esses polos. Se não traz o impacto de "Corra!", é mais eficiente em equilibrar suas ideias ambiciosas do que "Nós". O motivo de ele descer mais fácil é sua familiaridade. Não é uma refilmagem, e sim uma continuação tardia de "O Mistério de Candyman", que chegou aos cinemas em 1992 com a missão, como a de a maioria de seus pares, de criar um novo monstro icônico do terror.
Mesmo sem o impacto de Freddy Krueger ou de Pinhead, Candyman, o assassino sobrenatural com um gancho no lugar da mão direita, surgiu com pedigrée. O diretor do filme original, Bernard Rose, baseou seu roteiro em "The Forbidden", escrito por Clive Barker. No começo dos anos 1990, o nome de Barker estava na estratosfera, não só por ter reinventado a literatura de terror com "The Helbound Heart", mas também por ter dirigido em 1987 sua adaptação para o cinema, "Hellraiser".
Assim como os cenobitas de "Hellraiser", criaturas infernais condenadas à danação em uma eternidade de dor e prazer, o Candyman também tinha origens humanas. Ele fora Daniel Robitaille, filho de escravos dedicado às artes que, no século 19, cometeu o pecado supremo de se apaixonar por uma aristocrata branca. Espancado e mutilado, com sua mão substituída com um gancho de açougue, ele ainda fora imolado por picadas de dúzias de abelhas antes de ser queimado vivo.
A história original o apresenta como uma lenda urbana, um espírito de vingança que ressurge quando uma estudante pesquisa mitos na comunidade pobre em Chicago, o assentamento Cabrini-Green. Convocado quando tem seu nome repetido cinco vezes ante um espelho, o Candyman retorna como uma lembrança sangrenta do mal perpetrado em um inocente, agora amplificado pela fúria irrefreável da vingança.
Em 1992, a trama servia como moldura para uma filme mais preocupado com o impacto visual da carnificina do que com suas implicações culturais - além de trazer um final decididamente tolo. O novo filme não poupa o estomago do público com imagens horripilantes. Sua diretora, Nia DaCosta, opta no entanto por ressignificar a mitologia do original, costurando uma trama que coloca a violência racial como catalisador do ressurgimento da entidade, agora mais firme em seu propósito num ciclo de abuso social evoluindo em moto perpétuo.
No centro do novo filme está Anthony McCoy (o excepcional Yahya Abdul-Mateen III), artista plástico de certa forma conectado à tragédia ocorrida décadas antes em Cabrini-Green. Ao preparar uma nova peça em uma exposição coletiva modernete, ele pesquisa a lenda de Candyman e os acontecimentos envolvendo a estudante do filme original, Helen Lyle (Virginia Madsen, que retorna somente com sua voz).
Anthony descobre que a história de Helen, lembrada como uma lunática assassina na comunidade, reflete o círculo de violência do Candyman do século 19. Ao mergulhar no passado, porém, o artista abre uma passagem para a volta do mal, que busca uma forma física capaz de conter seu espírito maldito. É um caminho sem volta, de consequências aterrorizantes, materializado em um horror de transformação física que, de certa forma, lembra "A Mosca", de 1986.
Nia DaCosta (que agora prepara a aventura "The Marvels") conduz "A Lenda de Candyman" com um olhar elegante, amarrando sua narrativa não no choque de mortes e violência, e sim nas estrelinhas sociais da trama. A exploração do histórico de violência policial que há décadas assola a cidade de Chicago surge como o tabuleiro perfeito para desenhar uma história sobre como a injustiça racial é quase uma entidade de vida própria, uma chaga que infecta lugares e pessoas com a cegueira do preconceito.
Para isso ela pincela sua história com flashbacks que revelam a ressurgência cíclica do Candyman como uma resposta da comunidade ao flagelo que os homens no poder perpetraram nos desassistidos. A aparição é, em sua visão, menos um monstro com sede de sangue e mais a solidificação da vingança, que descobrimos reaparecer ciclicamente, manifestando-se em vítimas desse preconceito que terminam como veículo para o mais puro mal.
Não que "A Lenda de Candyman" seja um exemplar de terror psicológico. Nia DaCosta não se furta em desenhar seu terror visceral como um banho de sangue - as primeiras vítimas da entidade, que inicialmente só pode ser vista no espelho, parecem retalhadas por um homem invisível, vislumbrado em reflexos ocasionais. Em outro momento, um alvo parece ser deixado de lado, mas seu destino sangrento é revelado enquanto a câmera se afasta em uma panorâmica voyeurística.
O terror explícito em "A Lenda de Candyman" é um aceno calculado para os fãs tradicionais de filmes do gênero, que encontram aqui uma dose equilibrada de sustos e sangue. Mas é a conexão do medo primordial com o poder da memória - a coletiva e a real - que conduz a história, modernizada por um produtor que revelou o pulso do cinema de terror contemporâneo, e por uma diretora que soube traduzir a violência racial e a brutalidade policial como um eco que, não importa o quanto fique adormecido, há de ressoar.
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