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Por que o universo 'Matrix' retorna ainda mais relevante em 2021
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Poucos filmes mudaram, de fato, a história do cinema. "Matrix foi um deles. Quando a aventura de ficção científica chegou aos cinemas em 1999, um gatilho disparou no inconsciente coletivo de quem orbita o cinema, de ambos os lados da câmera. O que poderia cair na vala do filme de ação com verniz de fantasia logo mostrou-se algo mais. Diferente. Revolucionário.
Em teoria, 1999 seria o ano de "Star Wars: A Ameaça Fantasma", o retorno da maior série de fantasia espacial da história. Financeiramente, foi. Mas "Matrix" terminou como o filme a deixar marcas mais profundas.
Nos anos seguintes, dezenas de filmes seguiram os passos estéticos e narrativos do trabalho das irmãs Wachowski. A tecnologia dos efeitos especiais deu um salto importante em um mundo pós-"Jurassic Park". Lutas coreografadas em wire-fu foram uma febre no cinemão do começo do século. "Matrix" virou marca, uma tempestade criativa capturada em celuloide.
O público respondeu em peso. Com US$ 400 milhões em caixa, então a maior bilheteria de um filme a Warner, a dupla de cineastas ganhou sinal verde para expandir suas ideias. "Matrix Reloaded" e "Matrix Revolutions" chegaram em 2003, fazendo menos barulho mas entregando uma narrativa coesa e uma jornada completa.
Eu não esperava voltar ao mundo de "Matrix", especialmente quase duas décadas depois. Bom, nem o estúdio, pelo visto. Nesse hiato, o filme e seu universo repousaram em semi anonimato entre as propriedades intelectuais da Warner.
A cultura pop, claro, tem o hábito de manter suas paixões vivas. Mesmo assim, não houve uma nova série animada depois do brilhante "Animatrix". Não houve mais games depois de "Enter the Matrix", de 2003, e de "The Matrix Online" e Path of Neo", ambos de 2005. A série em quadrinhos, que teve um volume publicado no Brasil, também teve vida curta. O mundo dos colecionáveis, à exceção dos onipresentes Funko Pop, estacionaram há quase duas décadas.
Mas "Matrix" nunca foi sobre lutas bacanas ou efeitos visuais incríveis ou altas bilheterias ou traquitanas para colocar na estante. As Wachowski queriam um filme sobre ideias. Claro, o verniz cyberpunk e filosófico pode parecer por vezes bobo. Mas trazia cineastas que de fato tinham algo a dizer.
Duas décadas depois, os blockbusters globais surgem como ponta de lança de uma avalanche corporativa, cada filme um produto atrelado a dúzias de outros. Não existe nada errado em expandir uma marca para além do cinema. O caráter mercantilista traduzido em multiplexes com jeitão de shopping center também não significa que os filmes, em especial aqueles bancados por grandes estúdios, sejam colossos sem alma.
O centro emocional de "Matrix", porém, eram ideias preciosas, especialmente naquele fim de século, agora já tão distante, que parecia trazer um mistério insoldável com o novo milênio. Y2K, um mundo cada vez mais digital e individualista, a queda das torres gêmeas. Tudo trouxe uma nova ansiedade, um questionamento de nossas próprias crenças. Ideias que as irmãs Wachowski traduziram à perfeição em um filme de ação multifacetado.
Cá estamos, em 2021, prestes a voltar a esse mundo de algoritmos verdes e distopias cibernéticas. "Matrix Resurrections" é real. Com seu primeiro trailer, traz também uma tonelada de perguntas. Lana Wachowski agora comanda o projeto solo - sua irmã, Lilly, deixou claro que sua jornada nesse mundo terminou em 2003.
Lana, por outro lado, sempre pareceu o cérebro efervescente por trás da operação. Entre 1999 (ou 2003) e 2021, o mundo só ficou mais complicado. Saímos da era do bug do milênio para entrar no tempo da pós-verdade. O tecido do real tornou-se ainda mais poroso do lado de cá das câmeras, com a manipulação dos fatos, amplificada não só pela internet, mas por seu fácil acesso a qualquer um, tomando de vez o cenário social e político mundial.
Smartphones, satisfação pessoal traduzida em fama fugaz, culto à celebridade individualizado, com cada pessoa sendo o astro de seu próprio show em redes sociais. A vida privada jogada sob o holofote. Cada passo vigiado por pontos de encontro virtuais que conseguem personalizar nossa experiência online como se ouvissem nossos pensamentos. O mundo de 2021 parece cada vez mais a ficção científica de 1999.
Seria estranho se Lana Wachowski, que nesse período também assumiu e abraçou sua transição de gênero, não tivesse mais histórias para contar sob o prisma de "Matrix". Não vou gastar linhas para decodificar as imagens de pouco menos de dois minutos de trailer - até porque não tenho o roteiro do filme em mãos e qualquer tentativa em esmiuçar imagens aleatórias frame por frame seria um exercício em futilidade.
Conseguimos, entretanto, perceber que o olhar de Lana Wachowski continua apurado, suas imagens mesclando beleza plástica e função narrativa, usando as ferramentas do cinema para contar sua história. Mesmo em suas experiências menos fulgurosas, como "O Destino de Júpiter", havia um ímpeto criativo invejável.
Keanu Reeves também traz bagagem em seu retorno como Neo, já que o ator nunca foi participante voluntário do jogo da fama hollywoodiano, e mesmo assim se reinventou (mais uma vez) no cinema de ação com a série "John Wick". Carrie-Anne Moss traz a mesma intensidade como Trinity, como se tivesse saído ontem do set do filme original. Morpheus? Talvez, agora na pele de Yahya Abdul-Mateen II.
O resto de "Matrix Resurrections", porém, segue um mistério. Temos um vislumbre do que pode estar por vir. O retorno ao mundo virtual criado por máquinas escravagistas, o retrato congelado de uma sociedade apática, mais do que nunca perdida nas telas de seus smartphones. Reeve, como Thomas, se entupindo de pílulas azuis para nublar uma realidade escondida em sua mente. Novos agentes, novos rebeldes. É bom não ter de explicar nada. Uma experiência assim precisa ser sentida. Para isso, temos a pílula vermelha.
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