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Como o épico 'Duna' se tornou a aposta mais arriscada do cinema moderno
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Na virada do milênio, o cinema pop experimentou uma revolução com o lançamento da trilogia "O Senhor dos Anéis". O projeto mega ambicioso previa a produção de três filmes simultaneamente, única forma de cobrir a obra de J.R.R. Tolkien. O intervalo de lançamento entre cada episódio foi de um ano. Era um risco: caso o primeiro afundasse, o estúdio ainda teria dois outros filmes para lançar.
"Duna" enfrentou dilema parecido. A obra de Frank Herbert, um dos pilares da ficção científica, é impossível de ser condensada em um filme. David Lynch tentou em 1984 e fracassou de forma retumbante. Ao mergulhar no projeto de uma nova adaptação, o diretor Denis Villeneuve fracionou a narrativa em dois roteiros. O estúdio se comprometeu a rodar o primeiro. Já a segunda parte, surpreendentemente, ainda é uma incógnita.
O que é frustrante quando assistimos a "Duna", que traz um "Parte 1" já nos créditos de abertura. Compartilhei o sentimento com o diretor Denis Villeneuve, que se mostrou solidário e otimista. "Eu entendo sua frustração e vou aceitar como um elogio, porque o oposto seria um desastre", diverte-se o diretor, que conversou comigo pouco antes de apresentar seu filme no Festival de Veneza. "Quando as pessoas dizem que querem ver a segunda parte imediatamente é um alívio!"
A segunda parte de "Duna", entretanto, ainda é um gigantesco ponto de interrogação. "Eu disse aos produtores que não havia como filmar o livro se a história não fosse dividida em duas partes", explica Villeneuve. "É uma obra muito densa, muito minuciosa. Pelo volume de detalhes eu senti que espremer tudo em um único filme seria uma armadilha."
E foi justamente nessa armadilha que, em 1984, o diretor David Lynch se viu preso. Frustrado por não conseguir assumir o comando de "O Retorno de Jedi", o responsável por "Eraserhead" e "O Homem Elefante" tentou levar o romance de Frank Herbert ao cinema. Foi um desastre completo, um filme confuso e narrativamente inerte.
CUSTOS ASTRONÔMICOS PARA IDEIAS ÉPICAS
"A divisão de 'Duna' em dois filmes foi uma decisão que tomamos rapidamente", continua. "Minha ideia inicial era rodar as duas produções simultaneamente, fazendo bom uso do aparato já montado e criar uma obra que abraçasse o texto original." Peter Jackson seguiu esse mesmo caminho duas décadas atrás, mas o tempo trouxe um inchaço não antecipado: o custo.
A primeira parte de "Duna" abocanhou um orçamento estimado em US$ 165 milhões. Multiplicado por dois, foi um investimento que fez os produtores hesitares. Mesmo com a mesma escala épica de "O Senhor dos Anéis", "Duna" é um animal diferente.
"O preço para produzir as duas partes ao mesmo tempo foi um fator de peso", reflete Villeneuve. "Então percebemos que todos ficariam mais confortáveis se eu rodasse a primeira metade do livro, que traz um arco narrativo completo, para depois ver o que poderia acontecer."
Estranhamente, Denis Villeneuve encarou a empreitada como uma aposta que o deixou ainda mais animado para mergulhar na produção. "Foi empolgante para mim imaginar que meu filme teria de ser bom o bastante para justificar uma segunda parte", dispara. "Eu não posso prever o futuro e não podia contar com essa possibilidade, então coloquei todo o afeto que tenho pelo livro em meu trabalho, fiz 'Duna' como se fosse meu último filme."
"Duna" chega aos cinemas em um momento político e econômico global que deixa o texto de Frank Herbert ainda mais atual e relevante - o que certamente contribui para alavancar o interesse na trama. Parte da mitologia da série iniciada pelo primeiro livro, afinal, está enraizada na ocupação de uma terra estrangeira por uma força militar superior, com o objetivo de explorar seus recursos naturais.
"Esse é o grande propósito da ficção científica", filosofa o cineasta. "Explorar o presente, a nossa realidade, com um distanciamento que nos dá liberdade para falar sobre diversos assuntos sem ofender ninguém. Esse é um dos motivos que me fizeram fazer o filme hoje." Villeneuve ressalta que, ao se inspirar nos problemas observados no zeitgeist do século 20, Frank Herbert previu em muitas formas o que viria a acontecer no século 21.
CINEMA INTERROMPIDO
Ainda assim, é uma aposta e tanto. Muitas das séries de sucesso do cinema contemporâneo surgiram de apostas que foram naturalmente expandidas. "Homem de Ferro" deu origem, em 2008, ao universo cinematográfico Marvel. George Lucas criou sua própria galáxia em 1977 com "Star Wars", e nela vivemos até hoje.
Mas eram filmes com começo, meio e fim, obras que abriam espaço para uma continuação mesmo sobrevivendo separadamente como cinema. "Harry Potter" e "O Senhor dos Anéis", que completam agora 20 anos, foram apostas arriscadas, mas que se arvoravam em propriedades intelectuais de incomparável sucesso popular.
Por outro lado, não foram poucas as vezes que uma história foi contada e jamais concluída no cinema. "A Bússola de Ouro" supostamente iniciaria em 2007 uma sequência de adaptações da obra de Philip Pullman, mas a jornada não passou do primeiro filme - a HBO posteriormente retomou a história como a série "His Dark Materials".
Os exemplos não param aí. Quando Andrew Garfield assumiu o papel de Peter Parker em "O Espetacular Homem-Aranha", em 2012, o plano era expandir o universo do herói aracnídeo sob comando da Sony. A continuação lançada dois anos depois plantou várias pistas de uma história maior, mas com o herói agregado ao universo cinematográfico Marvel, em novos filmes encabeçados por Tom Holland, a ideia anterior foi descartada.
Destino pior teve "Divergente", série de ficção científica distópica lançada na esteira de "Jogos Vorazes". Baseado na trilogia literária de Veronica Roth, os filmes tiveram Shailene Woodley à frente. A primeira aventura, de 2014, foi seguida de "Insurgente" no ano seguinte. O terceiro livro, "Convergente", foi dividido em dois filmes - mas o segundo evaporou, deixando a história em aberto.
RETRATO DE UM DIRETOR OTIMISTA
A experiência de "Duna", embora fascinante e espetacular, precisa de uma segunda parte para ser completa. É quando os personagens encontram seu caminho, quando o mundo já está construído e estabelecido e pode, então, ser explorado. É quando veremos Timothée Chalamet liberar todo seu potencial como o escolhido para salvar o planeta árido chamado Arrakis.
"A boa notícia é que o estúdio está muito orgulhoso de 'Duna'", empolga-se Villeneuve. "Eles acreditam no filme." Ele respira fundo e hesita antes de concluir o pensamento: "Eu acho que as coisas estão positivas. Ainda não sei o que vai acontecer, mas eu estou sorrindo!".
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