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'Round 6': bem embalados, até produtos de quinta categoria viram um sucesso
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O Brasil tem muito que aprender sobre cultura pop com a Coreia do Sul. Uma combinação de investimento estatal e gente talentosa, que une qualidade e produtos para a massa, a potência oriental já emplacou um Oscar de melhor filme (para "Parasita") e a maior banda do planeta neste século (os onipresentes BTS). Agora tem também a maior série em streaming do mundo.
"Maior", nesse caso, não rima de forma alguma com "melhor". "Round 6" tornou-se um fenômeno global, primeiro lugar no ranking Netflix em todos os territórios cobertos pela plataforma. Sem astros. Sem mega campanha de marketing. Organicamente a série foi descoberta e abraçada, virando mania e cravando seu nome no tecido pop.
Eu mesmo cheguei atrasado à festa. Confesso que resisti em começar mais uma série, em especial por conta de todo o hype. É parte de meu trabalho ficar de olho em fenômenos assim, e foi uma decisão consciente esperar a poeira suavizar antes de maratonar a coisa toda. Olha, e foi difícil. Foi difícil encarar o primeiro episódio inteiro. Foi difícil não desistir no terceiro. Foi difícil chegar ao fim depois daquela bobagem com as bolinhas de gude.
É possível desenhar alguns motivos para tamanho sucesso. A trama é simples, rasa feito um pires, fácil de ser seguida. É série que a gente acompanha com o celular na mão, fazendo mil outras coisas, sem perder nada da trama. Até porque não há muito para ser absorvido: são dezenas de desconhecidos reunidos por uma turma misteriosa para se matar em jogos infantis distorcidos por um prêmio em dinheiro. Sexo e violência entram na mistura e voilá.
Nada de novo no front. Nada que não tenha sido melhor, por exemplo, em "Battle Royale" - com a vantagem de o filme que Kinji Fukasaku fez em 2000 colocar crianças se matando em uma ilha. Coisa fina. É um tema recorrente na cultura pop, acostumada com a reciclagem constante de ideias (não as crianças se matando, mas um torneio mortal por grana).
Em "Round 6" a coisa veio acompanhada de uma historinha legal, a do autor que passou fome e teve de vender seu laptop para comer. Que bateu com a cara em portas por uma década até finalmente emplacar seu projeto. Tudo faz parte do marketing, tudo colabora para aumentar a aura em torno da série.
As recusas foram, vá lá, justificáveis. "Round 6" traz uma pobreza crônica de ideas em uma embalagem legal. A produção é caprichada o bastante para conferir um verniz de qualidade. É uma série profissional, bem filmada, mesmo que seja um novelão de obviedades, atuações ruins e diálogos constrangedores. Personagens entram e saem sem nenhuma lógica. As tramas paralelas em nada avançam o desenrolar da história. Uma tristeza.
Alguns episódios, ok, ainda alavancam a engrenagem de uma boa história. Já outros são o mais puro suco da vergonha. Como o episódio em que convidados VIP são levados para os jogos de perto, falando inglês com a convicção de um atendente de telemarketing. Eles parecem os ricaços dos filmes do Walter Hugo Khouri: decadentes, hedonistas e sempre com um copo de uísque. Cringe.
Não existe em "Round 6" nenhum subtexto, não existe uma ideia central amarrando toda a trama. No fim, a série concebida por Hwang Dong-hyuk (desconfio que ele não terá mais de vender laptops), não fala sobre nada, não é uma crítica a nada. É só um exercício estético, com uma pitada de turture porn dos filmes "Jogos Mortais", aliado a uma discussão social que não sai da página dois.
Os realizadores de audiovisual na Coreia do Sul, porém, aprenderam a lição direitinho. Desde os anos 1990 o governo investe em novos nomes, mandados para aprender cinema em países com mais tradição, aplicando todas as lições em casa. O objetivo é difundir a cultura do país, suas ideias e suas peculiaridades, para todo o planeta. Está funcionando.
É uma lição que o Brasil ainda não assimilou. Uma potência de soft power tem seu lugar garantido à mesa com países de poderio militar e político superior. A Coreia do Sul hoje ajuda a dar as cartas no mundo. Investir em cultura é parte do plano.
Aqui, por outro lado, não existe plano. Os mecanismos de incentivo à cultura foram dilapidados no governo atual, que recusa-se a enxergar a força da pluralidade na produção artística. A ideia é espelhar sua própria ignorância, escondendo sua total incompetência em frases populistas como "acabou a mamata" e "ideologia comunista". Perde o Brasil, que vai demorar boas décadas para se recuperar desse desastre e resgatar algum prestígio além de nossas fronteiras.
Fica a lição, portanto, para o futuro. Se "Round 6" não é exemplo como produto, a série é uma inspiração como projeto. A Netflix percebeu o poder da imagem e como sua difusão em redes sociais é supersônica. Mesmo antes de assistir à série eu vi a tal boneca gigante do jogo "batatinha frita 1, 2, 3..." circulando em feeds alheios. A coisa tomou tamanha proporção que já estão usando a boneca como adereço de festa infantil e fantasia de halloween.
É a mesma lição ensinada por outra série ruim que virou fenômeno. "A Casa de Papel" esticou um fiapo de história, que no máximo renderia um bom filme, em cinco temporadas que não fazem mais nenhum sentido narrativo, mas que funciona que é uma beleza como produto. Ano que vem, teremos bonecos Funko Pop de "Round 6". No planeta Terra do século 21, essa é a verdadeira régua do sucesso.
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