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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Marighella': Wagner Moura resgata história que o Brasil teimou em esquecer

Colunista do UOL

04/11/2021 02h45

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O Brasil é um país sem memória. O melhor exemplo é a ditadura militar, encerrada em 1985 após 21 anos de opressão, que mancha o país como uma chaga ainda aberta. Sem fazer as pazes com a violência bancada pelo estado, sem encarar erros passíveis de repetição, testemunhamos hoje absurdos como uma horda mínima e ruidosa de ignorantes que clama por uma intervenção militar.

Em outros países da América Latina que experimentaram os terrores de uma ditadura, como Argentina e Chile, memoriais e museus são mantidos em locais antes palco de tortura. Preservar essa lembrança é levantar a vergonha de quem foi cúmplice de tempos nefastos, deixando que os anos de autoritarismo sejam um murmúrio distante, indigesto e, espera-se, irreplicável.

A cultura tem papel fundamental nessa vigilância. Nesse contexto, "Marighella" é uma obra essencial, urgente, atual e indispensável. Ao biografar um recorte da trajetória do "guerrilheiro que incendiou o mundo", Wagner Moura, estreando como diretor, recupera um momento importante em que vozes dissidentes pegaram em armas para lutar contra a ditadura e foram apagados da história pela mão pesada do regime militar.

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Seu Jorge e Wagner Moura discutem os rumos de 'Marighella'
Imagem: Paris

Não é surpresa, portanto, que desde sua concepção "Marighella" tenha enfrentado a pressão de forças que buscavam impedir sua realização. De ameaças veladas (outras nem tanto) ao longo de sua produção, até a censura que usou as minúcias da burocracia para tentar barrar seu lançamento dois anos atrás, ele finalmente estreia como símbolo da mesma resistência que um dia incendiou uma geração.

Mais curioso é que o filme, finalmente levado ao público, passa longe de ser a mera peça política que desperta tanto temor no contingente mais extremo da direita no Brasil. "Marighella" é vibrante e intenso, um drama de ação que troca diálogos discursivos por sequências eletrizantes, apresentando seu protagonista sem meias palavras: um homem apaixonado por seu país, disposto a infligir o terror nas forças ditatoriais para remover o Brasil do jugo da ditadura.

Ao adaptar o livro "Marighella - O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo", lançado por Mário Magalhães em 2012, Wagner Moura recupera a história do homem emboscado pela polícia e assassinado na noite de 4 de novembro de 1969.

O filme volta esse relógio em um ano, quando Carlos Marighella (em uma interpretação forte de Seu Jorge), militante comunista e deputado federal, funda o maior grupo armado de oposição à ditadura militar, o Ação Libertadora Nacional. O estopim fora uma tentativa de assassinato que ele sofrera quatro anos antes, no primeiro ano do golpe, em um cinema carioca.

A trama concentra-se no ano mais intenso de atuação do ALN, doze meses antes da morte de seu idealizador, quando o grupo intensificou os métodos de guerrilha urbana para enfraquecer o regime. Foram assaltos a banco, sequestros, ações terroristas e assassinatos empreendidos por jovens que perceberam que suas palavras não alcançavam a população, e que a resposta era devolver a repressão com a mesma força para, talvez, chegar ao ouvido do povo.

"Marighella", portanto, não é um documentário sobre seu protagonista. Não busca reproduzir com exatidão acontecimentos ao longo de 1968. É uma dramatização de eventos em uma ficção que busca reconstruir, sim, o espírito dos homens e mulheres que ergueram-se em uma luta inglória.

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MArighella após o atentado contra sua vida que impulsionou sua resistência ao golpe
Imagem: Paris

Personagens como os de Humberto Carrão e Bella Camero são amálgamas de guerrilheiros reais que atuaram no país. Os extraordinários Luiz Carlos Vasconcelos e Jorge Paz, por sua vez, abraçam papéis que, mesmo com outros nomes, representam Joaquim Câmara Ferreira, comandante da ALN e mentor do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, e Virgilio Gomes da Silva, primeiro preso político a ser declarado desaparecido após a promulgação do nefasto Ato Institucional Nº 5.

A figura mais assustadora em "Marighella", contudo, é a do delegado Lúcio, interpretado por Bruno Gagliasso. Construído a partir de Sergio Fleury, delegado do DOPs notório por sua predileção por tortura e assassinato, ele representa o braço do estado que abraçou a repressão como política pública.

Em um trabalho brilhante que impressiona pela frieza, Gagliasso confere a Lúcio a face do mal, sem espaço para entrelinhas, sem nenhuma preocupação em humanizar alguém que tinha como ofício matar em nome da ditadura. Wagner amplifica esse aspecto na cena em que o delegado tortura um dos guerrilheiros, em uma sequência tão impactante quanto brutal. Ao fundo, os gritos dos filhos do prisioneiro, igualmente vitimados pela crueldade estatal.

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Bruno Gagliasso abraça a escuridão de um agente da ditadura em 'Marighella'
Imagem: Paris

A precisão da câmera de Moura fica evidente já na sequência que abre o filme. Um plano sequência ao som de "Banditismo por Uma Questão de Classe", de Chico Science & Nação Zumbi, que acompanha a ação do ALN ao roubar um trem transportando armamento militar. É uma cena de beleza ímpar, de apuro técnico e de pulso narrativo forte. É cinema de verdade.

Seu Jorge construiu seu Marighella com afinco mesmo enfrentando críticas desde sua escalação unicamente por ser negro. O tom da pele se tornou argumento único de quem buscava bater na obra antes mesmo de ela existir, como se fosse possível no Brasil desassociar uma narrativa sobre uma tragédia social e política da discussão racial. Não é.

A pressão o ajudou a lapidar ainda mais seu trabalho para conferir personalidade e camadas a Marighella. O ator entendeu a proposta de Wagner Moura e não fez de seu Marighella um mártir. Ele é, sim, um homem em constante conflito, ainda que determinado em sua luta. Um pai. Um amante. Uma pessoa de carne e osso.

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Carlos Marighella em meio a uma ação para fortalecer a luta armada
Imagem: Paris

Acima de tudo, Marighella surge como um líder consciente de que travava um combate desigual, empenhado não somente em elevar a temperatura do conflito ao responder violência com violência, mas também fazer com que a voz das ruas ultrapassasse a barreira da censura para que o povo pudesse enxergar o abismo no qual o golpe jogara o país.

É providencial, portanto, que "Marighella" chegue aos cinemas agora, quando movimentos igualmente opressores buscam manipular a verdade e jogar sobre a população o véu da desinformação. A arte não determina o futuro de um país, mas promove reflexão sobre o espírito do tempo, sobre as consequências de viver num regime de ódio e ignorância e sobre o preço da liberdade e da vigilância perene.

Morto pela polícia em 1969, Carlos Marighella teve sua história deturpada para que ele fosse retratado como um assassino bárbaro. O livro de Mário Magalhães trouxe luz aos fatos, mostrando um homem irreverente e culto, que também não era avesso a pegar em armas para defender um ideal. É uma história que espelha movimentos radicais de esquerda no Brasil e no mundo, em uma época em que as chamas da revolução incendiavam a apatia de quem se entregava às correntes de uma ditadura.

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Marighella testemunha os primeiros passos da ditadura militar no Brasil
Imagem: Paris

"Marighella", o filme, desperta sentimentos semelhantes ao recuperar o patriotismo e os símbolos nacionais não como marcas de um regime de ferro, e sim como expressões da liberdade de um povo. No Brasil, esse mesmo povo despertou em 1985, quando a opressão já perdera a força e as mentiras promovidas pela censura não resistiam mais às manifestações nas ruas.

O Brasil é um país sem memória. A arte, portanto, tem papel fundamental em não deixar com que esqueçamos quem encarou a repressão e perdeu a vida pela liberdade. Não importa se você concorda ou não com os métodos de Carlos Marighella. É essencial, entretanto, que você conheça sua história. Por isso que "Marighella" é o filme brasileiro mais importante dos últimos anos.