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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Novo 'Homem-Aranha' mistura universos em um filme ambicioso e sensacional

Colunista do UOL

15/12/2021 04h00

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"Todos os personagens em um filme do Homem-Aranha só existem para ajudar Peter Parker em sua jornada." Era 2004, ano em que "Homem-Aranha 2" se tornou a melhor tradução do herói para o cinema, e o produtor Avi Arad me respondia como os vilões de cada aventura eram escolhidos. Não por seus "poderes bacanas". Muito menos por "pressão dos fãs". "A história vem sempre em primeiro lugar", ressaltou Avi.

"Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa" traz essa regra executada à perfeição. Mesmo para um filme com ambições estratosféricas, reunindo uma coleção de personagens que mal cabe na tela, a nova aventura nunca perde o foco de seu protagonista. Em meio à pirotecnia, a evolução de Peter Parker surge dolorosa, recheada de decisões e sacrifícios, transbordando emoção em cada cena, de momentos intimistas a explosões cinéticas desenhadas para arrancar aplausos. Funciona muito!

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O Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch) dá um toque amigo no Homem-Aranha
Imagem: Sony

A diferença deste para boa parte dos filmes com super-heróis é sutil, porém crucial. O diretor Jon Watts, fechando essa trilogia do Aranha no universo Marvel do cinema, foi cuidadoso ao trabalhar com o tema que conduz a trama. "Sem Volta Para Casa" é um filme sobre segundas chances, sobre entender que, mesmo com a melhor das intenções, ainda erramos um monte. Mas que, ao assumir a responsabilidade, podemos fazer o certo.

É esse o fardo carregado por Peter Parker: culpa. "Sem Volta Para Casa" começa exatamente onde seu antecessor, "Longe de Casa", terminou: em uma transmissão online, o editor do "Clarim Diário", J.J. Jameson (J.K. Simmons, ainda bem!) revela a identidade secreta do Aranha, tornada pública como uma vingança pós-morte de Mystério (Jake Gyllenhaal).

A vida de Peter, já caótica, torna-se uma rotina de repórteres, agentes federais e curiosos que ou querem ou um abraço, ou lhe jogar uma pedra. A ajuda de um advogado habilidoso o livra da cadeia, mas as consequências de não ter mais uma identidade secreta afeta a todos, especialmente seu melhor amigo, Ned (Jacob Batalon), e sua namorada, MJ (Zendaya), que perdem a chance de entrar no MIT por sua associação com Peter.

Ele busca, então, a ajuda do Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch), que conjura um feitiço para fazer com que o mundo esqueça a identidade secreta do Aranha. O truque sai pela culatra. Como consequência, pessoas de outras dimensões, que conhecem a verdade sobre o herói, são atraídos para seu mundo. Daí o surgimento de vilões tanto dos filmes de Sam Raimi (Dr. Octopus, Duende Verde e Homem de Areia) quanto dos conduzidos por Marc Webb (Electro e o Lagarto).

O engarrafamento de ameaças historicamente não faz bem para os filmes de super-heróis. Em "Sem Volta Para Casa", porém, os visitantes terminam como um dilema moral para Peter. Sabendo que foram vilões que morreram em um conflito com o Homem-Aranha de seus mundos, o herói bate de frente com o Dr. Estranho para tentar "consertar as coisas". É o gatilho para Peter redescobrir, a duras penas, que grandes poderes de fato trazem grandes responsabilidades.

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O Duende Verde (Willem Dafoe) segue com a máscara de Power Ranger
Imagem: Sony

"Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa" traz semelhanças, ao menos conceituais, com "Homem-Aranha", filme que Sam Raimi dirigiu em 2002 e que, depois dos ensaios de "Blade" e "X-Men", inaugurou a era da Marvel nos cinemas. É, ao mesmo tempo, uma empreitada criativa e um produto corporativo.

Como produto, o Homem-Aranha é dividido por duas empresas, a Marvel e a Sony, que por conta de um acordo antigo (e aparentemente inquebrável) detém os direitos do herói e de seu próprio universo de personagens para o cinema.

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Alfred Molina retorna como o Doutor Octopus
Imagem: Sony

É curioso, portanto, que "Sem Volta Para Casa" resgate personagens de encarnações anteriores do herói no cinema e, abusando da metalinguagem, também lhes dê uma segunda chance - seja como uma redenção narrativa (digam olá para Alfred Molina), seja para arrumar uma trama anteriormente capenga (Jamie Foxx, vai que é sua!).

Dessa forma, o novo filme, uma máquina incrível movida a emoção, aventura e nostalgia, também serve como marco para determinar o lugar do personagem tanto na estrutura do universo cinematográfico Marvel como nos planos da Sony em expandir seu próprio catálogo.

"Venom" e "Morbius", afinal, funcionam como entidades solo até a página dois. Mas é inegável que a turma corporativa não vê a hora de recuperar sua joia da coroa, atualmente nas mãos competentes da Marvel. Provavelmente a parceria dure por mais um filme estilo "Vingadores", mas agora o futuro do personagem segue aberto para uma reinvenção.

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Electro, Homem de Areia e Lagarto: uma parede de vilões em 'Sem Volta Para Casa'
Imagem: Sony

O plano, claro, ainda envolve Tom Holland, que em sua sexta aventura como Peter Parker, mostra-se o intérprete mais completo que o herói já teve, com e sem a máscara. "Sem Volta Para Casa" encerra um ciclo, mas o próprio ator demonstrou interesse em se manter envolvido com a série e com o personagem. O "como", entretanto, permanece uma incógnita.

Esse mistério é o que mantém a engrenagem azeitada. O cinema de entretenimento moderno, uma fera impulsionada basicamente por uma fileira interminável de propriedades intelectuais, precisa de um elemento de suspense para funcionar e sobreviver em um cenário em que um fim de semana ruim nas bilheterias pode afundar um projeto de longa gestação.

Descobrir os segredos de "Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa" se tornou, nessa época de informações supersônicas, esporte favorito de uma fatia de fãs postiços. Afinal, alimentar-se de spoilers é tão irrelevante quanto ler uma receita de bolo para satisfazer a fome. Não importa se você "descobriu" o que pode acontecer no filme ou se você foi pego totalmente de surpresa: o que vale é a experiência completa quando as luzes se apagam.

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O Aranha subiu no poste para olhar a concorrência láááá embaixo...
Imagem: Sony

É nesse momento em que o mundo, ainda assustado, lentamente retorna aos cinemas, que "Sem Volta Para Casa" surge como um programa sensacional. Tudo bem que as cenas de ação não raro sejam confusas com tanta coisa pipocando na tela. Tudo bem que o filme precisa de bula, já que assistir às aventuras do Aranha assinadas por Sam Raimi e Marc Webb seja fundamental para entender a personalidade dos vilões visitantes.

Quando funciona, entretanto, o novo "Homem-Aranha" é um pedaço de entretenimento de encher os olhos, um filme que entende seus personagens, que respeitas seus fãs e que preocupa-se não só em amadurecer seu protagonista, mas em também deixar suas possibilidades mais uma vez empolgantes. Ao contrário de muitas produções que lidam com universos compartilhados, a curiosidade em saber o próximo passo é genuína.

"Homem-Aranha: Sem Volta Par casa" funciona, principalmente, por ser inteiramente sobre seus personagens. Tom Holland entrega aqui seu melhor momento como Peter Parker. Willem Dafoe prova por que o Duede Verde ainda é o inimigo mais implacável do herói - como bônus, a máscara de Power Ranger não dura muito. Zendaya é um achado desde sempre como MJ.

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Zendaya e Tom Holland são a âncora emocional de 'Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa'
Imagem: Sony

A pirotecnia cinematográfica traz aquele brilho no olhar e garante um trailer sempre bacana. Mas é quando suas emoções estão transbordando que o filme se coloca acima de seus pares. Esse baque é brutal e implacável. Seus momentos emblemáticos não ficam atrás - em especial no clímax, no topo da Estátua da Liberdade, com uma cena que vai deixar o cinema inteiro eufórico (você vai saber exatamente qual quando assistir).

"Homem-Aranha 2" ainda reina supremo como melhor tradução live action para o personagem mais sensacional já criado pela Marvel. Mas não é exagero cravar que "Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa" está ali, mordendo seus calcanhares. Mostrando aos coleguinhas, cada vez mais "épicos", que para conquistar seu lugar nesse jogo basta ser um filme-evento com coração.