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Cinema, #MeToo, covid e 'O Festival do Amor': Uma conversa com Woody Allen
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Woody Allen não trabalhou durante a pandemia. O novo mundo trazido pela covid interrompeu um fluxo que seguia ininterrupto desde 1977, quando ele fez "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa", e trouxe um filme novo praticamente a cada ano.
Os problemas para o diretor, claro, não se restringiram à pandemia. Em 2014 alegações de abuso sexual, um caso fechado no começo dos anos 1990, voltaram à mídia quando sua ex-mulher, a atriz Mia Farrow, inflamou as redes sociais ao lado de seu filho com Woody, o jornalista Ronan Farrow, na esteira da ascensão do movimento #MeToo.
Muitos atores, especialmente de uma nova geração, como Timothée Chalamet e Selena Gomez, foram a público dizer que não trabalhariam mais com o diretor. A Amazon, com quem ele assinara um contrato para produzir filmes direto em streaming, cancelou o acordo. "Um Dia de Chuva em Nova York", rodado como parte do acordo, chegou aos cinemas mais de um ano depois de concluído.
"O Festival do Amor" é o primeiro filme de Woody Allen depois da polêmica. Rodado antes da pandemia de covid, é uma comédia romântica amarrada como uma homenagem aos cineastas que inspiraram Allen como artista.
Com a chegada de "O Festival do Amor" no Brasil, eu bati um longo papo com Woody Allen sobre o novo filme e também sobre a cultura do cancelamento, sua rotina durante a covid e o estado das coisas na indústria do cinema atual. "A situação não está boa", comenta, como você pode conferir na entrevista a seguir.
O protagonista de "O Festival do Amor", Mort Rifkin (Wallace Shawn), questiona se ele é um esnobe por seu gosto impecável e conhecimento enciclopédico em cinema. O senhor acredita que nutrir essa paixão por cinema e sua história hoje em dia pode fechar os cinéfilos em uma bolha?
Acredito que sim. O cinema seguiu por caminhos muito diversos do ponto de onde um dia ele estava. Quando eu comecei a trabalhar nessa indústria filmes eram considerados uma forma de arte de grande alcance. Grandes diretores criavam arte no cinema, e a cada semana eu e meus amigos ficávamos empolgados em descobrir novos filmes que chegavam nos Estados Unidos. Filmes franceses, italianos, suecos, japoneses... Era um fenômeno cultural imenso e havia um público enorme para eles. Lentamente essa indústria foi mudando.
Qual é a mudança mais estridente que o senhor enxerga nessa indústria hoje?
Os cinemas abrigam filmes gigantescos como "Homem-Aranha", que rendem uma fortuna e custam outra fortuna para ser produzidos. Mas eles são feitos por motivos diferentes. Não são arte, não existe uma tentativa para que eles sejam arte. O objetivo é ser o mais comercial possível e atrair multidões. E tudo bem, não há problema nisso, porque milhões de pessoas gostam de ir ao cinema para ser entretidos. Eu sou totalmente a favor da existência de dois cinemas. O cinema comercial, onde as pessoas encontram exatamente o que procuram, e um cinema mais artístico. O problema é que esse cinema artístico desapareceu. Filmes europeus não chamam mais atenção nos Estados Unidos, filmes de arte não têm uma boa performance nas bilheterias, o público é muito pequeno. É uma perda imensurável.
Como então formar um público novo para esse cinema?
Difícil dizer. Os jovens vão a ótimas universidades, mas quando eles falam sobre os filmes que assistiram, são filmes tolos, comerciais. É uma geração com acesso à melhor educação e eles estão gostando de ver lixo. Eu era um péssimo aluno, saí da faculdade por ser um péssimo aluno. Eu e meus amigos não éramos nem um pouco intelectuais, a gente cresceu na rua jogando baseball. E nós adorávamos os filmes de Bergman e Fellini, de Truffaut e De Sica. Era o tipo de filme que a gente assistia. Eu acredito, portanto, que o público de certa forma mudou, e é uma plateia decepcionante porque seriam as pessoas com quem esperávamos contar para se interessar por cinema como uma expressão artística. O resultado é que um filme feito com US$ 12 milhões termina perdendo dinheiro. E os filmes feitos por mais de US$ 100 milhões conseguem ter lucro. Os produtores preferem investir em filmes de US$ 100 milhões e não nos de US$ 12 milhões. O risco é menor quando existe uma quantidade obscena de dinheiro em jogo.
O senhor tinha um acordo com a Amazon antes do começo da pandemia, firmado antes que as plataformas de streaming estreitassem sua relação com outros diretores. Veremos cada vez menos filmes independentes e de baixo orçamento no cinema, ou ainda é cedo para prever o futuro da indústria?
Uma parte imensa da plateia optou hoje por assistir a filmes em casa. Era um movimento forte antes da pandemia, e quando a crise estourou ninguém queria sair de casa. Ninguém queria morrer! Meses se passaram, ficamos em casa e ligamos a televisão. A tecnologia de telas planas e som surround faz com que seja bem melhor sentar usando pijamas do que enfrentar o frio do lado de fora. É só apertar um botão, então não há motivo para se vestir, ir ao cinema e sentar ao lado de duzentas pessoas que podem ter covid. Essa conta de filmes para ver em casa e produções multimilionárias não fecha. Não sei como é com a sua geração, mas a minha geração não cresceu com filmes assim. A situação não está boa, e eu ouço pessoas o tempo todo dizendo que não há mais bons filmes. Eu não quero ver "Homem-Aranha", não quero ver "Os Vingadores". Mesmo que apareçam bons títulos como "Ataque dos Cães", de Jane Campion, eles são a minoria, espremidos na temporada do fim do ano. Ainda podemos pescar um ou outro bom filme artístico entre a inundação de blockbusters ruins, mas eles são cada vez mais raros.
O cinema independente está destinado a desaparecer?
Sempre teremos um certo número de filmes independentes, existem ótimos diretores e roteiristas que querem fazer filmes que não sejam apenas entretenimento vazio visando o lucro. Mas a vida sempre será difícil para o cineasta independente. Se os grandes diretores que eu homenageio em "O Festival do Amor", como Truffaut, Bergman, Fellini e Godard, ainda estivessem entre nós, eles enfrentariam mais dificuldades do que em sua época. Tenho certeza que existem diretores inovadores e muito talentosos em outros países que têm coisas originais a dizer. Mas não há público para eles, ao menos não há um público grande.
"O Festival do Amor" foi seu primeiro filme depois que as acusações de abuso dos anos 1990 contra o senhor ressurgiram na mídia. Agora que o mundo está lentamente se recuperando do que pareceu ser a pior parte da pandemia, como o senhor vê, a partir de agora, seu fluxo de trabalho, especialmente sua relação com os atores com quem o senhor quer trabalhar?
Bom, honestamente eu não sei até quando eu vou fazer filmes. Meu próximo filme será meu quinquagésimo projeto, então não sei até onde eu ainda vou. Mas vamos supor que eu queira fazer filmes até eu ter 100 anos. Então eu faço filmes! Eu escrevo o filme que quero escrever. Escolho o elenco que tenho em mente. Se um ator quiser trabalhar comigo, ótimo! Se não quiser, eu escolho outro ator. Se nenhum ator quisesse trabalhar comigo eu não faria mais filmes, mas não é o caso.
Houve alguma dificuldade em escolher o elenco de "O Festival do Amor"?
Alguns atores com quem eu queria trabalhar não quiseram entrar no projeto. Tudo bem, é um país livre. Então escolhemos outros. Eu não penso muito nessa questão, acho que sempre vou poder trabalhar, pelo menos enquanto quiser manter esse ritmo. Até porque fazer filmes dá trabalho! A gente acorda cedo, ficamos em pé o dia inteiro, temos de tomar um milhão de decisões, antecipar mil outros problemas. É exaustivo e eu não sei se é algo que eu quero fazer indefinidamente. Digamos que seja, e que talvez eu queira mesmo fazer filmes pelo resto de minha vida. Então eu continuarei fazendo os filmes que surgirem em minha cabeça. Sempre terei um ótimo elenco e uma equipe excelente. Todos estão felizes em trabalhar. Outros atores, não. Mas é uma decisão deles.
O século 21 viu o senhor levando suas histórias para além de Nova York, com filmes ambientados em algumas das cidades mais bonitas do mundo, incluindo San Sebastian em "O Festival do Amor". Fiquei curioso em saber se a história surge primeiro ou se o senhor escreve inspirado na cidade em que ela se desenvolve.
Um pouco de cada. Às vezes eu me apaixono por uma cidade e me esforço para encontrar uma história lá. Outras vezes, como no caso de "O Festival do Amor", surge a proposta de fazer um filme na Espanha com financiadores locais, então eu penso em como seria essa história. Como eu já havia feito um projeto em Barcelona, que é uma cidade que eu adoro, pensei em San Sebastian, porque já estive lá em seu festival de cinema e lembrava do quanto a cidade é linda. Pensei em fazer "O Festival do Amor" sobre o próprio festival, sobre filmes e sobre as ilusões que a vida trata de encerrar, nos forçando a ser flexíveis e a mudar. Mas cada lugar é diferente. Às vezes é questão de dinheiro. Alguém financia um projeto na França, então eu queimo os neurônios para encontrar uma história em Paris. Às vezes a ideia surge porque eu sempre quis filmar em Roma, então concentro as energias na cidade. Varia em cada projeto.
Eu lembro que há alguns anos houve um burburinho com a possibilidade de o senhor rodar um filme no Rio de Janeiro. O projeto de fato existia?
Sim, era um projeto real, e eu adoraria filmar aí. Minha irmã, que é uma de minhas produtoras, viajou para São Paulo e para o Rio, e ela achou a cidade encantadora. Eu busquei uma ideia que fosse boa para ser feita no Rio. Mas não uma ideia que pudesse ser filmada em qualquer cidade. Eu queria algo que fosse sobre o Rio, que a cidade também fosse personagem na história. Como em "Meia-Noite em Paris", em que Paris também é um personagem. Essa ideia ainda não surgiu. Mas se eu pensar em algo assim, nada me deixaria mais contente do que filmar no Rio.
A produção de filmes teve de ser reinventada por causa da pandemia por boa parte dos últimos dois anos. Como foi sua rotina nesse período?
Minha rotina foi sair da cama e ficar em casa. Quando entramos em lockdown eu estava pronto para ir a Paris rodar um filme. Foi uma situação assustadora. Ainda é! Mas quando tudo começou, senti que foi pior. As pessoas ficaram em casa, eu fiquei em casa, não saia nem para comprar comida. Fui muito cuidadoso. Mesmo quando me aventurei em sair de casa evitava chegar perto de qualquer um, mantinha distância de quem estivesse na rua. Basicamente pedi para me acordarem quando tudo estivesse terminado, até porque obviamente eu não poderia filmar, não poderia encontrar minha banda de jazz, não poderia tocar. Não fui ao teatro, tudo estava fechado, nem a restaurantes, já que também estavam fechados. Só queria que me avisassem quando alguém derrotasse o vírus. E o vírus obviamente foi politizado, com gente se orgulhando de não estarem vacinados. Uma gente muito tonta. Os mais ponderados perceberam o valor das vacinas, que restaurou a confiança em sair de casa, em ter controle sobre o vírus. A vacina traz a vida de volta, a vacina impediu que muita gente parasse no hospital em um respirador. Se todos estivessem vacinados já teríamos derrotado o vírus. Mas sempre há uma turma menos esperta que recusa a vacina. Por causa dessas pessoas a pandemia continuará sendo um fator por muito tempo.
Voltar a trabalhar dentro dos novos protocolos nunca foi uma possibilidade?
Não acho que seria divertido fazer um filme com todo mundo usando máscaras, com um médico no set, com todo mundo sendo testado regularmente. Deus nos livre de uma pessoa ter Covid e a produção ser interrompida por semanas. Não é assim que se faz um filme! Além de ser muito caro, é loucura! Fazer um filme já é bem difícil quando tudo está perfeito e todos fazem a coisa certa. Mas não seria a mesma coisa trabalhar com a sombra da Covid em nossas cabeças. Quando o mundo voltar a respirar eu volto a filmar.
Espero que esse projeto, quando a pandemia finalmente se dissipar, seja um filme aqui no Brasil.
Eu adoraria! Nada me faria mais feliz! O Brasil é muito charmoso e muito exótico, é o lugar perfeito para fazer um filme.
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