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Vencedor em Cannes, "Titane" é uma fábula brutal sobre identidade de gênero
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Fugindo de um passado perturbador e violento, Alexia (a estreante Agathe Rousselle) assume a identidade de uma criança desaparecida uma década antes. Em silêncio ao posicionar-se como vítima de um trauma, ela encontra uma figura paterna em Vincent (Vincent London), mas uma gravidez cada vez mais evidente, e seu delicado estado mental, colocam em risco a farsa.
Colocado assim, "Titane" soa como um drama familiar embebido em tragédia. Nas mãos da diretora Julia Ducournau, porém, o filme que venceu a Palma de Ouro em Cannes ano passado, e chega ao Brasil pela plataforma de streaming MUBI, surge como um experimento absolutamente genial sobre a imperfeição da carne, as consequências brutais e imprevisíveis do trauma e as percepções, nem sempre claras, sobre identidade e gênero.
Ah, e é também um filme sobre uma mulher que faz sexo com veículos automotores. Duas vezes.
Se o prato de "Titane" parece cheio, seja de entrelinhas, alegorias, metáforas e conexões emocionais, é porque ele de fato está. Não existem caminhos fáceis no cinema de Ducournau. Seu primeiro filme, "Grave", acompanhava uma jovem vegetariana que, depois de provar carne pela primeira vez, mergulha lentamente no canibalismo. "Titane" é uma produção mais rebuscada em sua forma e ainda mais radical em seu conteúdo.
Encontrar a beleza no grotesco é parte da visão da diretora já na primeira cena, quando Alexia, então uma criança inquieta, provoca seu pai e causa um acidente de carro. Uma placa de titânio é inserida em seu crânio, resultando em uma cicatriz profunda que enfeita sua cabeça, e na saída do hospital percebemos que sua relação com máquinas automotivas redefine o conceito de perturbador.
Uma década depois, ela é uma modelo trabalhando em uma feira automobilística, dançando seminua sobre um carro tunado, para o delírio de uma plateia de entusiastas. Perseguida por um admirador, Alexia mostra que assassinato é outro de seus interesses.
Um massacre seguido de familicídio a coloca em fuga. Para não ser reconhecida Alexia modifica seu rosto (seu nariz é alvo preferencial de sua fúria) e busca a polícia dizendo ser Adrian, filho de um chefe de bombeiros desaparecido há dez anos. Agora "ele", Alexia/Adrian procura manter a ilusão no lugar em sua nova vida, convivendo com outros bombeiros e com um "pai" superprotetor e igualmente perturbado.
"Titane" navega com delicadeza insuspeita a linha que separa ousadia e vulgaridade, assumindo os riscos com segurança, tornando-se um filme, sim, estranho, ainda que surpreendentemente acessível. O mérito é todo de Julia Ducournau, que mantém o pulso firme em sua visão mesmo quando seu trabalho é sexualmente intenso e abundantemente sangrento.
Acima de tudo, "Titane" é uma fantasia, uma alegoria que se atreve a questionar as fronteiras da identidade de gênero ao inserir elementos de body horror em sua mistura. Subgênero do terror, que farta-se em representar violações, modificações e deformidades físicas e psicológicas do corpo humano (pense em "Videodrome" ou "A Mosca", ambos de David Cronenberg), aqui manifestado quando Alexia, progressivamente desconfortável com a fragilidade de sua prisão de carne, descobre-se grávida. Suas secreções corporais não surgem como sangue, e sim como óleo de motor.
É uma jornada de descoberta refletida em todo o entorno da protagonista. Apresentada como Adrien no corpo de bombeiros por Vincent, ela é vista pelos soldados ou como uma figura andrógina, ou como um golpista que envolveu seu capitão. O clima homoerótico, sublinhado nas festas promovidas no batalhão, é outro elemento narrativo quando atravessa, em uma mesma cena, os extremos da cumplicidade e do constrangimento.
A escolha de "Titane" pela França para representar o país entre os indicados ao Oscar é, no mínimo, curiosa. O comitê foi obviamente ousado e acreditou na verdadeira obra de arte que tinha em mãos. A Academia, por sua vez, talvez tenha achado os temas e sua apresentação um tanto arrojados demais para sua festa e não colocou o filme em sua pré lista de indicados. "Parasita" é um fenômeno que certamente não será repetido tão cedo.
Não que Julia Ducournau precise desse tipo de afago para prosseguir com seu cinema fascinante, perturbador e hipnotizante. É uma contradição feliz ver que a violência extrema de "Titane" é amplificada - e, ao mesmo tempo, apaziguada - pela doçura das relações e pelo afeto genuíno que transborda em uma história sobre um pai e seu filho.
É um filme de extremos que mostra um coração delicado. É um legítimo body horror que vai fazer muita gente virar o rosto. É uma sátira social que coloca na mesa questões sobre identidade de gênero, sexualidade e sexo, de forma reflexiva e com bom humor inesperado. É, acima de tudo, um filme que merece - e exige! - sua atenção plena.
Em um mundo de filmes fáceis, "Titane" é um oásis de forma e conteúdo, uma aposta que coloca todas as fichas na mesa e não tem o menor pudor em pagar para ver. Julia Ducournau merece, sem firulas, ser chamada de visionária. David Cronenberg, eu tenho absoluta certeza, está orgulhoso.
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