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'Morte no Nilo': Bom elenco empresta charme a este mistério à moda antiga
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Existe algo irresistivelmente charmoso nessa adaptação de "Morte no Nilo", comandada mais uma vez por Kenneth Branagh. Ao contrário do mergulho anterior do diretor na obra de Agatha Christie, o travado "Assassinato no Expresso do Oriente", aqui a trama é mais fluida, mais divertida e ainda absurdamente antiquada. É uma cápsula do tempo disfarçada de filme.
"Morte no Nilo" não traz, claro, peripécias como as de espiões modernos ao estilo Ethan Hunt ou Jason Bourne. Seu protagonista, o belga Hercule Poirot, é afeito em desenvolver a ação em sua mente. É sua capacidade de observação e dedução que nos conduz a um mistério de assassinato com zero ação, violência quase nula e uma coleção de personagens com não mais que um fiapo de história.
Seria um erro, portanto, atualizar a obra de Agatha Christie. Dá um frio na barriga a possibilidade de usarem seus livros como base para um mistério moderno. Muitos diretores teriam a tentação irresistível de transformar os diálogos que desenrolam a trama, muitas vezes com o elenco sentado em uma sala, em sequências de ação aceleradas. Simplesmente não combina.
Kenneth Branagh é, por outro lado, um óbvio entusiasta do material original, tornando-se a pessoa perfeita para a condução do filme. Assim como em "Assassinato no Expresso do Oriente", ele também assume o papel de Poirot, que aqui ganha um flashback trágico e uma personalidade menos excêntrica e mais centrada.
Não que isso lhe tire o brilho. Maior criação de Agatha Christie, Poirot é herdeiro direto do estilo de Sherlock Holmes em encarar um mistério - o personagem clássico, diga-se, não a versão de Robert Downey Jr. O maior atrativo para o leitor de suas aventuras é coletar as provas do crime a seu lado e desvendar o mistério com ele.
Como o título do filme já entrega, o crime em "Morte no Nilo" é assassinato. Mas especificamente a morte da milionária Linnet Ridgeway (Gal Gadot), que reúne seus amigos mais próximos em uma viagem pelo Egito para celebrar seu noivado com Simon Doyle (Armie Hammer, em provavelmente seu último filme por um bom tempo). Todos reunidos no Karnak, um navio de luxo, e todos são automaticamente suspeitos.
Cada reviravolta coloca o holofote em um novo suspeito, e quando mais corpos aparecem, mais divertido é acompanhar o raciocínio lógico de Poirot. Suas revelações são seguidas muitas vezes da expressão de espanto no resto do elenco, o que deixa tudo deliciosamente arcaico e divertido.
Existe uma certa ingenuidade na condução da história que combina com o ano em que o livro foi lançado. Em 1937, também época da ambientação da trama, o Egito ainda exercia um fascínio exótico no mundo ocidental. Agatha Christie sabia usar esse pano de fundo para amplificar a sensação de isolamento, ao mesmo tempo em que amarrava sem pressa fragmentos narrativos de diferentes personagens para resolver o mistério no último minuto.
No comando do filme, Kenneth Branagh entende que o jogo dos suspeitos é mais bacana do que a resolução do mistério, e escalou um elenco talentoso o bastante para disfarçar o quanto a construção dramática do filme é rasa.
Funciona. Gal Gadot e Armie Hammer abusam de seu charme de astros de cinema (no caso dele, um charme que evapora), enquanto veteranos como Annette Bening, Jennifer Saunders e Dawn French emprestam credibilidade à empreitada. Tom Bateman contrapõe a sisudez de Poirot como seu escudeiro na investigação, Letitia Wright e Emma Mackey mantém a bola da dúvida quicando e eu confesso ter demorado alguns minutos para reconhecer Russell Brand.
Não existe em "Morte no Nilo" a sofisticação de um thriller de assassinato como o recente "Noite Passada em Soho". Exemplares modernos do gênero whodunit, como "Entre Facas e Segredos", mostram como uma atualização do conceito pode ficar de pé usando o mesmo alicerce - Benoit Blanc, interpretado por Daniel Craig, é o herdeiro perfeito de Hercule Poirot.
Nem todo filme, entretanto, precisa ser a reinvenção de um gênero. Existe algo confortável em "Morte no Nilo", seja em sua direção elegante e eficaz, seja no elenco que entende exatamente seu lugar, seja nos efeitos digitais que dão um ar de artificialidade a cada cena. É retrô com zero ironia, é cinema para assistir com a vovó. Não é grande arte, mas são duas horinhas que passam numa brisa. Às vezes, na maioria das vezes, é o que basta.
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