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'Belfast': Lindo, emocionante e, sim, você já viu esse filme antes
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É muito fácil gostar de "Belfast", mesmo que seja por um caminho tortuoso. Ao revirar o baú de suas memórias, o diretor Kenneth Branagh dramatizou sua infância na capital da Irlanda do Norte em 1969, quando católicos e protestantes entraram em conflito político e religioso que arrastou-se por três décadas em uma guerra não declarada.
O filme de Branagh não está interessado em nada disso. A tensão crescente é o cenário para acompanhar a jornada de uma família para decidir seu futuro em uma cidade cada vez mais devastada e perigosa. A escolha desenhava-se cada vez mais clara: deixar Belfast para uma vida na Inglaterra ou mesmo em algum país da Comunidade das Nações, como o Canadá ou a Austrália.
Cercado pelo tumulto latente está Buddy (o estreante Jude Hill), que no alto de seus 9 anos procura entender porque sua vizinhança, antes um lugar de convivência pacífica entre protestantes como ele, e outros moradores católicos, de repente tornou-se parte de uma guerra que não parece fazer sentido.
Sua vida resume-se a seu núcleo familiar e as amizades cultivadas nas ruas do bairro, como a menina de sua classe por quem ele arrasta uma asa. Sua constante são a mãe dedicada (Caitriona Balfe) e principalmente seus avós, aqui interpretados por Ciarán Hinds e Judi Dench. Seu pai (Jamie Dornan) trabalha em Londres, e cada folga em casa parece antever uma mudança inevitável.
Branagh dirige "Belfast" com afeto incondicional, pulso que parecia ausente de seu trabalho atrás das câmeras, há uma década entregue a propriedades intelectuais como Thor, Jack Ryan, Cinderela, obras de Agatha Christie e o equivocado "Artemis Fowl", uma bobagem que queria muito ser Harry Potter e fracassou majestosamente.
Essa paixão, e o óbvio cuidado com a produção, são ferramentas para buscar um norte para o filme. Não há em "Belfast" foco para ancorar a trama. Ao trabalhar com recortes, algumas sequências parecem aleatórias, outras são pouco exploradas. O caos, claro, é apropriado, já que acompanhamos a história sob o olhar de uma criança.
Esse resgate de sua infância joga um pouco de luz para a paixão de Branagh por contar histórias. Mesmo que não seja uma autobiografia assumida, não há como ignorar as pistas salpicadas ao longo do filme, especialmente o contato com a fantasia - "Jornada nas Estrelas" e "Thunderbirds", eram parte do cardápio televisivo de Buddy.
A televisão é também seu contato com westerns americanos, clássicos como "Matar ou Morrer" ou "O Homem Que Matou o Facínora". Quando a família vai ao cinema, há a fuga da violência exponencial nas ruas com o mergulho na fantasia na forma de "Mil Séculos Antes de Cristo" e "O Calhambeque Mágico".
São fragmentos, entrecortados por lições de moral e sabedoria de almanaque. Essa segunda parte surge das conversas de Buddy com seu avô - lembrando que juntar uma criança adorável e um velhinho sábio é tiro e queda para um filme despertar empatia. Quando o garoto compartilha seu temor em deixar Belsfast e morar onde ele não será compreendido, a resposta é certeira: "Se não te entenderem, eles que não estão ouvindo, o problema é deles". Fofo.
É uma fórmula tão antiga quanto o próprio cinema. O diretor John Boorman criou um drama belíssimo sobre sua infância na Londres devastada por bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial em "Esperança e Glória". Neste filme de 1987, além de um avô e seu neto, havia também uma linha narrativa clara ao retratar o fim da infância e o otimismo de estar vivo.
"Belfast", por sua vez, é derivativo e sentimental. Mas é impossível não se envolver, é impossível não cair na armadilha tecida por Branagh quando ele compensa qualquer deslize narrativo com pura emoção e beleza desavergonhada.
Pode não ser o grande filme do diretor (este ainda é "Henrique V"), mas com certeza é a história certa, sincera e empolgante para, neste momento em que o mundo anda sombrio e nebuloso, sair da sessão com o coração preenchido por uma fração de esperança. É o que basta.
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