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'Os Bons Companheiros', 'Narc' e o legado brilhante e intenso de Ray Liotta
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Para mim, e acho que para todo mundo, Ray Liotta surgiu de verdade em "Os Bons Companheiros". Assim que li a notícia de sua morte, um filme com "melhores momentos" do filme de Martin Scorsese passou na cabeça. Todos eram com Ray.
Seu rosto, claro, já era familiar. Depois de um começo na TV, ele já deixara sua marca em "Totalmente Selvagem", de Jonathan Demme. Depois, teve papel pequeno e fundamental no drama místico "Campo dos Sonhos", com Kevin Costner.
Lançado em 1990, "Os Bons Companheiros" elevou o nível do jogo. Scorsese já tinha Robert De Niro e Joe Pesci no filme, mas entregou o protagonista a Ray Liotta. Foi uma decisão ousada, que por fim tornou-se acertadíssima - fica a dica, NUNCA duvidar de Scorsese!
O papel era Henry Hill, que "desde criança sonhava em ser um gângster", que Ray defendeu com fúria. Sua progressão frenética foi do auge do poder como criminoso à paranoia alimentada pelo vício em drogas, finalmente terminando como delator para o FBI e recluso no programa de proteção à testemunha.
A mudança física experimentada por Liotta ajudava a dimensionar não só a gravidade de sua jornada, mas também a desconstrução da imagem romantizada do crime organizado que o cinema - e o próprio Scorsese - construíra ao longo de décadas.
No Oscar do ano seguinte, Ray Liotta sequer foi indicado como melhor ator - Joe Pesci levou a estatueta como coadjuvante. "Os Bons Companheiros" viu o prêmio máximo da noite ser entregue a Kevin Costner por "Dança Com Lobos". Paciência.
Hollywood, por sua vez, enxergou em Ray Liotta como uma nova mercadoria a ser explorada em seu tabuleiro. Nos anos 1990 ele experimentou de tudo um pouco. Foi do thriller ("Obsessão Fatal") à ficção científica ("Fuga de Absolom"), do drama motivacional ("Corina, uma Babá Perfeita") à comédia da Disney ("Operação Dumbo").
Em cada papel, não importasse o gênero, atuava com a mesma intensidade, conduzindo seus personagens com a mesma disciplina. A essa altura também já estava claro que o negócio de Ray Liotta não era enfeitar o cartaz dos filmes com seu nome: ela lapidar cada vez mais seu ofício.
O que não é fácil quando o mundo passa a te conhecer como protagonista de um dos melhores filmes da história, voz de uma das frases mais emblemáticas do gênero - "Até onde eu posso lembrar, eu sempre quis ser um gângster". A opção em escolher personagens interessantes e não projetos para alavancar o ego foi um risco consciente.
A carreira construída por Ray Liotta mostra que ele escolheu o caminho certo, brilhando forte sem precisar carregar o peso de um filme nos ombros.
Foi assim como um dos policiais corruptos no excepcional "Cop Land", com Sylvester Stallone. Foi assim em "Hannibal", em que ele tem o crânio aberto pelo canibal imortalizado por Anthony Hopkins. Foi assim como o prisioneiro que finge ser policial no suspense "Identidade".
O motor que impulsionava Ray Liotta era o trabalho, era a composição de personagens. Esse desprendimento foi transformado em ecletismo, que o fez navegar entre cinema, TV e até emprestando a voz em videogames, uma carreira que soma mais de uma centena de papéis.
Claro que nem sempre havia a preocupação com a qualidade do material - ninguém de olho em qualidade se aventura a trabalhar com o diretor Uwe Boll, que o dirigiu no desastre "Em Nome do Rei". A variedade, porém, gerou frutos inusitados, como seu papel na animação "Bee Movie".
Ray, acima de tudo, encarava o cinema e sua profissão com bom humor. Ao responder um questionário sobre sua carreira para a revista inglesa "Empire", ele conseguiu errar 90 por cento das perguntas, todas construídas em cima de seus próprios filmes. Não é que ele não ligasse para sua filmografia: o importante parecia sempre o trabalho seguinte.
Seu último grande papel foi o de advogado implacável em "História de Um Casamento", emprestando sua notória intensidade ao drama encabeçado por Scarlett Johansson e Adam Driver.
Ray Liotta morreu dormindo em um hotel na República Dominicana enquanto filmava "Dangerous Waters", mais um filme dedicado a preencher espaços na prateleira dos streamings e de serviços de VOD. Era um entre seis projetos em andamento.
Foi "Os Bons Companheiros" que gravou seu nome na história do cinema, um personagem com o equilíbrio perfeito de determinação e a fragilidade, resultando em um filme brilhante.
Mas, se puder recomendar um segundo trabalho entre a extensa filmografia de Ray Liotta, seria o drama independente "Narc". Ele bancou o projeto como produtor, deu liberdade ao diretor e roteirista Joe Carnahan e, ao lado de Jason Patric, apresentou uma de suas performances mais complexas. Uma pérola para coroar a carreira de um artista que partiu cedo demais.
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