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Por que 'Top Gun Maverick' é o filme que vai salvar o cinema
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Sim, o cinema precisa ser salvo. Com "Top Gun: Maverick", Tom Cruise pegou para si a missão de resgatar a experiência compartilhada na sala escura.
Pelo visto, conseguiu: o filme arrecadou, em seu primeiro fim de semana, US$ 134 milhões só nos Estados Unidos, podendo bater em US$ 151 milhões na contabilidade do feriado do Memorial Day.
Os números são um triunfo não só para Cruise ou para a Paramount, estúdio que bancou a conta. Indicam também que uma fatia enorme do público está disposta a sair de casa para aproveitar uma aventura que, veja só, funciona para todo mundo.
Vale uma explicação. Desde o começo da pandemia de covid, o mercado do cinema tomou um baque histórico. As salas em todo o mundo ficaram vazias por meses, medida necessária para preservar vidas.
No auge do isolamento social, muitos cinemas fecharam as portas por não segurar o baque. O hábito de ver filmes foi transferido para casa, no streaming, acelerando um processo que já era irrefreável.
As portas foram reabrindo de forma tímida. Filmes como "Tenet" e "Mulher-Maravilha 1984", ambos de 2020, estacionaram abaixo das expectativas. Com a pandemia lentamente sob controle graças à vacinação e ao esforço de quem se conscientizou, o cinema aos poucos experimentou um retorno à normalidade.
As três maiores estreias desse período foram no final do ano passado e já em 2022: "Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa" (US$ 260 milhões), "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura" (US$ 187 milhões) e "Batman" (US$ 134 milhões).
São resultados ótimos para grandes filmes. Mas é um cenário que também representa um problema: o afunilamento do público do cinema, com super-heróis como produtos direcionados a uma plateia mais e mais hermética.
A questão foi levantada recentemente pelo diretor James Gray, que levou seu novo filme, o drama "Armageddon Time", ao Festival de Cannes. Ele acredita que os estúdios devem, sim, perder dinheiro com filmes de perfil mais autoral, justamente para preservar o futuro de seu próprio negócio.
É uma teoria que faz todo sentido. Historicamente, desde o "Guerra nas Estrelas" de 1977, as grandes bilheterias do cinema abrem espaço para que filmes menores ocupem espaço entre os candidatos a blockbuster. A engrenagem não pode parar.
Isso é saudável artisticamente, para oxigenar diretores e atores que podem contar histórias mais pessoais sem a pressão das bilheterias. Também ajuda a melhor lapidar os talentos que inevitavelmente constroem as produções baseadas em grandes propriedades intelectuais.
Se o cinema for habitado unicamente por super-heróis, em menos de uma década toda uma geração sem o menor interesse em figuras extraordinárias com trajes coloridos vai simplesmente abandonar o hábito de sair de casa e escolher um filme para imergir por duas horas. Nada seria pior.
É preciso, portanto, que exista espaço para respirar. É preciso que um filme como "O Homem do Norte" seja produzido pelo valor milionário desembolsado pelo estúdio, sem que a única contrapartida seja um retorno nas bilheterias. Cinema não é só um negócio: é também arte.
O conceito de arte, por sua vez, repousa também em sua apreciação coletiva. A experiência do cinema cria lembranças indeléveis. Consumir filmes como "conteúdo", somente por streaming, não reproduz esse resultado. A longo prazo, um elemento vital se perde em meio ao volume.
Não é o caso de criar uma polarização, não é "arte" vs. "entretenimento". Se "Thor: Amor e Trovão" é cinema tanto quanto "Triangle of Sadness", filme vencedor em Cannes, então ambos merecem seu espaço para exibição em salas de cinema. Não há nenhum motivo para que o público seja diferente.
O que nos traz de volta a "Top Gun: Maverick". Inicialmente programado para 2019, o filme foi adiado para o ano seguinte. Com a pandemia, Tom Cruise pressionou para que não houvesse um lançamento até que esse privilégio fosse unicamente dos cinemas.
O que ocorreu em seguida foi uma dança de datas, uma busca pelo momento ideal para que a aventura pudesse ser apreciada em seu lugar de direito - o que ocorreu neste fim de semana. No meio tempo, Cruise ligava para seus companheiros de elenco, garantindo que ele não desistiria do filme.
"Top Gun: Maverick" é, claro, produto de um grande estúdio, ancorado por expectativas altíssimas. Entretanto, é também um filme adulto, que não faz parte de uma marca como Marvel, 007 ou Star Wars, não existe para vender bonequinhos ou outras traquitanas. É cinema experimentado e consumido à moda antiga.
Seu sucesso mostra que, mesmo em meio ao público dominante atual, existe espaço para um filme encabeçado por um astro de 60 anos de idade - talvez o último astro de verdade do cinema -, que continua uma história lançada há quase quatro décadas, mais velha que boa parte desse mesmo público.
O espaço para produções com esse tipo de apelo - nostálgico, guiado por um astro, simples em seu conceito e sofisticado em sua execução - estava diminuindo gradativamente. Como o dinheiro ainda manda, "Top Gun" pode abrir um precedente necessário.
O maior filme de 2019 foi "Vingadores: Ultimato", com o restante do Top 10 dividido por outros super-heróis, produtos Disney, Star Wars e um solitário "It - Capítulo 2". A pandemia bateu pesado em 2020, que manteve "Bad Boys Para Sempre" no topo das bilheterias americanas, atropelado no resto do mundo por três produções chinesas.
Ano passado os super-heróis mais uma vez dominaram os númenos nos Estados Unidos ("Homem-Aranha", "Shang-Chi", "Venom" e "Viúva Negra"). O onipresente cinema chinês, de qualidade nem sempre comprovada, dividiu as atenções do resto do mundo com o último "007" e com "Velozes & Furiosos 9".
"Top Gun: Maverick" mostra que existe espaço para o cinema ser menos monotemático - isso, claro, em relação ao cinema mainstream, que monopoliza milhares de salas. Tudo bem. Quanto mais filmes puderem encher as salas com um público diverso, melhor.
Não cabe aqui o cinismo do cinéfilo "raiz", que olha torto para um candidato a blockbuster como "Top Gun". Achar que o cinema se resume ao circuito independente é tão prejudicial quanto sair de casa unicamente para ver hominhos super poderosos.
Quando eu era moleque, o cinema era um lugar mais plural, em que discussões sobre orçamentos e bilheterias nunca entravam em pauta. O importante era descobrir bons filmes, espalhar as boas novas e deixar que o público, diverso e curioso, se forme organicamente. Cinema é, acima de tudo, paixão.
Claro, as próximas semanas verão outras propriedades intelectuais invadindo o multiplex do shopping. A animação "Lightyear" vem do universo "Toy Story". Novos exemplares de "Jurassic World" e "Minions" estão na fila.
As opções, entretanto, não se resumem a produtos que continuam a ser consumidos após a sessão, seja no fast food, seja na loja de brinquedos. Filmes incríveis também estão chegando aos cinemas, como o independente "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo", o libanês "1982" e "Luta Pela Liberdade", do chinês Zhang Yimou ("Lanternas Vermelhas", "Herói").
Todos, sem exceção, merecem ser descobertos no cinema. Mesmo que os super-heróis vão continuar salvando o mundo. Mesmo que as grandes propriedades intelectuais dominem a maioria das salas. Existe alternativas!
"Top Gun: Maverick" provou que o cinema não precisa estar direcionado a um único público, não pertence a uma só "tribo". Adolescentes e adultos podem aproveitar a mesma experiência, sem precisar de bula. Sem precisar de um "final explicado".
O cinema, afinal, ainda é a melhor forma de viajar sem sair do lugar. É um espaço democrático, o melhor para compartilhar o grande barato que é assistir a um filme ao lado de desconhecidos que, por duas horas, dividem a mesma emoção. E não é ruim que ela venha de carona no sorriso de Tom Cruise.
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