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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como 'The Boys' se tornou a série perfeita para quem detesta super-heróis

Anthony Starr é o Capitão Pátria em "The Boys" - Prime Video
Anthony Starr é o Capitão Pátria em 'The Boys' Imagem: Prime Video

Colunista do UOL

14/06/2022 04h00Atualizada em 16/06/2022 04h45

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"Não acredito que eles meteram essa!" Foram mais ou menos essas palavras que saíram de minha boca ao final do quarto episódio da terceira temporada de "The Boys". Não acredito, se a memória não deu kaput, que tenha sido a primeira vez.

A adaptação da série de quadrinhos de Garth Ennis e Darick Robertson, atualmente em curso na Prime Video, criou o hábito de seguir caminhos narrativos totalmente fora da casinha. A regra parece uma só e tem sido seguida à risca: não dê ao público o que ele espera.

Foi assim que "The Boys" firmou-se como a antítese de todo filme e série que, pelo menos ao longo da última década, tirou os super-heróis de gibis do papel. Ao contrário das aventuras dos personagens da Marvel e da DC, porém, ninguém aqui está a salvo, e todo mundo é um alvo.

A cereja no bolo? Os vilões são, na verdade, os maiores super-heróis da Terra.

theboys team - Prime Video - Prime Video
The Boys em... 'The Boys'
Imagem: Prime Video

Publicada entre 2006 e 2012, a série em quadrinhos "The Boys" trazia uma desconstrução dos arquétipos dos super-heróis, especialmente personagens da DC e da Marvel, banhada em humor ácido.

O conceito não era novo. Alan Moore, por exemplo, havia humanizado e torcido as convenções dos super-heróis ao avesso duas décadas antes em "Watchmen". A grande diferença em "The Boys" era a inclinação para a ultraviolência em um mundo com seres superpoderosos 100 por cento ativos.

Cada edição era um banho de sangue, cada morte era mostrada com criatividade sádica por Ennis e Robertson. O mais importante, contudo, era despir os heróis mais famosos do planeta, um supergrupo chamado "Os Sete", basicamente um copy/paste da Liga da Justiça, de qualquer vestígio de empatia.

O único freio para estes super-heróis descontrolados - seu líder, o Homelander, não passava de um psicopata capaz de varrer cidades inteiras se acordasse de mau humor - seriam a "rapaziada" que batiza o título. Agentes a serviço do governo, vindos da CIA ou com origens ainda mais obscuras, que surgiam como baliza para os exageros dos supers.

Liderados por Billy Butcher, que também não se furtava em promover a eventual carnificina de supers, cada membro da equipe também desenvolvia superpoderes, e cada arco dramático da série abraçava uma linha narrativa que, por fim, concluiu uma grande trama ao fim da série.

Em "The Boys", o gibi, super-heróis são retratados como uma turma insegura e paranoica, viciados em seu próprio culto à celebridade - e também em uma dúzia de substâncias ilegais. Não há exatamente para quem torcer. Garth Ennis nutre um desprezo saudável pelo conceito de super-heróis desde que escreveu o Justiceiro para a Marvel. Isso só fez com que o gibi fosse mais honesto e mais sensacional.

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Billy Bruto (Karl Urban) troca uma ideia com o Capitão Pátria (Anthony Starr)
Imagem: Prime Video

A estreia da adaptação no streaming foi em 2019. Se a pergunta era como traduzir o clima anárquico e absurdamente violento do gibi para outra mídia sem perder seu impacto, o criador da série, Eric Kripke, logo mostrou que sabia exatamente o que estava fazendo.

Logo em seu primeiro episódio, "The Boys" mostrou que não tinha a menor intenção em tirar o pé do acelerador. Melhor ainda: algumas decisões criativas, como não conceder superpoderes aos caçadores de super-heróis, ampliaram ainda mais o fator de risco do programa. Tudo é imprevisível. Tudo pode acontecer.

A ideia também era fazer com que "The Boys" fosse acessível para quem nunca abriu um gibi na vida. Ao fazer da série um thriller de espionagem e conspiração, que calha de ser povoado por super-heróis, o público "leigo" não se sentiria de fora da piada.

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O dilema de Bruto: O que acontece quando você se torna o que você mais odeia?
Imagem: Prime Video

Com o tabuleiro pronto, "The Boys" no streaming tratou de usar a série em quadrinhos como base, mas logo criou sua própria mitologia, favorecendo o desenvolvimento de personagens e não a pirotecnia.

Parte de seu triunfo vem do elenco escolhido à perfeição. Karl Urban é Billy Butcher (ou "Bruto"), o casca grossa que odeia super-heróis. Nada é gratuito, os motivos são revelados ao longo da série.

Seu contraponto é Anthony Starr, que devia ganhar uma pá de prêmios por seu trabalho como Homelander, chamado no Brasil Capitão Pátria. Nunca o retrato do "poder absoluto que corrompe totalmente" ganhou representação mais insana ou perigosa.

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'A Origem dos Sete': Filme dentro da série cutuca sem pudor uma certa "versão do diretor" recente
Imagem: Prime Video

Essa terceira temporada segue surpreendendo, com reviravoltas constantes e imprevisibilidade real. Volto à nossa dieta atual de super-heróis: eu sou fã incondicional do Batman e do Homem-Aranha, mas existe em seus filmes uma sensação de segurança ausente em "The Boys".

Nesse panorama da cultura pop em que super-heróis se tornaram um pilar de sustentação, é saudável perder a paciência com a avalanche de produtos, no cinema e em streaming, que muitas vezes serve a um propósito corporativo, e não criativo.

"The Boys", com seu flerte com o fascismo, o militarismo, o controle social feito por grandes corporações e com as consequências do poder absoluto nas mãos de um psicopata, faz sua parte em escancarar um reflexo exagerado, porém preciso, do mundo do lado de cá.

Tudo bem, portanto, o mundo pop hoje ser dominado pela fantasia da turma que salta para o alto e avante. Melhor ainda que esse mesmo mundo tenha gerado um produto tão subversivo como "The Boys". É surpreendente, é bem escrito, é empolgante e absolutamente imprevisível. E eu ainda não acredito que meteram aquela no episódio da semana passada...

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