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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Tudo Em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo: O universo se expande nessa obra-prima

Michelle Yeoh em "Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo" - Diamond
Michelle Yeoh em 'Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo' Imagem: Diamond

Colunista do UOL

17/06/2022 15h18

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Você nunca viu nada igual a "Tudo Em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo". A hipérbole pode ter sido banalizada nos últimos anos, mas ela é real quando o assunto é o filme assinado pelos Daniels.

Poucas vezes o cinema promoveu um ataque aos sentidos tão vibrante. Poucas vezes um conceito mirabolante foi executado em uma explosão de criatividade tão intensa quanto surpreendente. Para quem busca originalidade, é um verdadeiro banquete.

O filme explora, também, o conceito do multiverso. Eu sei, é a ferramenta narrativa da vez, de "Homem-Aranha no Aranhaverso" a "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura", passando por "Rick and Morty" e, vá lá, "Lightyear".

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Jamie Lee Curtis dá forma ao pesadelo que é declarar o imposto de renda
Imagem: Diamond

Na visão dos Daniels, contudo, a ideia do cruzamento de realidades paralelas não existe unicamente para expandir as possibilidades dramáticas. Ela é ingrediente para uma história que busca, além do estímulo aos sentidos, impacto emocional e filosófico.

Tudo isso embalado na história de uma micro empresária, uma mãe de família que, em meio a um conflito com sua declaração de imposto de renda, descobre ser a única capaz de impedir que uma entidade poderosíssima cause a implosão de todos os universos. Para isso, ela precisa adquirir novas habilidades ao se conectar com suas versões em universos paralelos.

"Tudo Em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo" não é, entretanto, uma aventura de ficção científica marcada por cenas de luta espetaculares (embora também seja tudo isso).

A intenção dos Daniels - os diretores e roteiristas Daniel Kwan e Daniel Scheinert - é explorar um drama sobre pessoas normais arremessadas em uma situação extraordinária.

Para isso, sua ambição não é menor do que contemplar o próprio sentido da vida. É o dilema colocado à frente de Evelyn Wang (Michelle Yeoh, em um papel transformador). Ela encara um casamento sem encanto, um negócio em frangalhos e uma filha gay (Stephanie Hsu, uma revelação) com quem ela não consegue conversar. Ah, e precisa se acertar com o fisco, representado por uma Jamie Lee Curtis que nunca esteve melhor.

A pergunta em sua mente espelha uma questão que todo mundo - eu, você, seu vizinho, o padeiro - já levantou: o que aconteceria se eu tivesse tomado decisões diferentes em momentos diferentes de minha vida?

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Ke Huy Quan em um frame que poderia ser de 'Amor à Flor da Pele'
Imagem: Diamond

No conceito dos Daniels, cada escolha resulta em uma ramificação diferente no tecido do universo. Direita ou esquerda, para cima ou para baixo, sim ou não. Em cada momento que avançamos nossa existência, em algum lugar, em outro plano, outra versão de nós mesmos segue um rumo diferente.

É um conceito fascinante, solidificado quando Evelyn é confrontada por seu marido, Waymond (Ke Huy Quan, o companheiro de Indiana Jones em "O Templo da Perdição", o Data de "Os Goonies", de volta à frente das câmeras), um sujeito passivo que é "tomado" pela consciência de uma outra versão sua, mais auto confiante, vinda de uma realidade tomada pelo caos.

É quando Evelyn, ainda relutante, vê o multiverso aberto para ela. A manobra funciona para que ela absorva habilidades de "outras" Evelyns de mundos paralelos, o que vai lhe dar poder para enfrentar Jobu Tupaki, a entidade que busca o colapso do multiverso sobre ele mesmo.

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Stephanie Hsu e as cores em choque entre universos paralelos
Imagem: Diamond

Ao encarar outras versões de si mesma - como uma cantora de ópera, uma chef ou uma artista marcial que também é atriz de sucesso -, Evelyn questiona suas próprias decisões e considera uma vida diferente da sua. Abandonar o plano significa também a vitória de Jobu Topaki.

A execução dessas ideias fora da casinha mostra o que acontece quando um estúdio, no caso o independente A24, tem total confiança nos cineastas e apoiam cada uma de suas decisões criativas, por mais absurdas que elas possam soar.

O resultado faz de "Tudo Em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo" uma tapeçaria de gêneros. Pode ser uma aventura de ficção científica marcada por cenas de luta espetaculares.

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Stephanie Hsu e Ke Huy Quan, filha e marido defendidos por Michelle Yeoh
Imagem: Diamond

Mas também é uma comédia anárquica, um melodrama sobre uma família fragmentada. Até uma narrativa experimental sobre duas pedras dialogando em silêncio num planeta árido ou um romance lésbico em um mundo em que nossos dedos são salsichas (!).

Tem o espírito dos filmes de artes marciais de Honk Kong. Ao mesmo tempo, consegue mimetizar o espírito romântico do cinema de Wong Kar-Wai. É um quebra-cabeças de peças que sequer deveriam se encaixar. É uma obra única, engraçada, empolgante e estranhamente emocionante.

"Tudo Em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo" vai habitar seus pensamentos por muito tempo. Eu sigo digerindo cada pedaço do filme, já ansioso por novas doses. Deixo a tarefa de decifrar essa obra-prima dos Daniels para alguém mais esperto do que eu. Por hora, sentir já é o bastante.