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Sedutor e surpreendente, 'Sandman' reescreve as regras da fantasia na TV
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Não existe nada como "Sandman". Em um mundo acelerado, em que filmes e séries de aventura e fantasia entrecortam fragmentos de roteiro com ação vertiginosa, a adaptação da série de quadrinhos criada por Neil Gaiman se atreve a pisar no freio e contemplar a paisagem.
Essa pausa é necessária para entender o mundo apresentado em "Sandman". A fantasia moderna é, afinal, ditada por batalhas épicas, maquinações políticas e, não raro, o destino do mundo. "A Casa do Dragão" e "Os Anéis de Poder" logo farão o sangue pulsar e o coração acelerar com a promessa do retorno empolgante a dois cenários familiares.
A jornada empreendida em "Sandman" é, por sua vez, de introspecção. Não havia como ser diferente. A saga de Morpheus, manifestação física do Sonho, começa com seu século de aprisionamento, passa à promessa de vingança e atinge seu clímax com a redescoberta pelo protagonista de seu lugar no mundo.
Talvez aqui seja necessário um pouco de contexto. Lançado em 1989 pela DC Comics, antes de ser posicionado no selo Vertigo, "Sandman" foi o primeiro grande trabalho do inglês Neil Gaiman para a editora. Depois de escrever a minissérie "Orquídea Negra", ele recebeu a tarefa de reimaginar o personagem clássico da forma que achasse melhor.
Com a liberdade, Gaiman reposicionou o Sandman longe de suas origens como um super-herói de traje colorido. Em vez disso, ele foi reapresentado como Morpheus, a personificação antropomórfica do Sonho, mestre de um reino que recebe cada um de nós quando dormimos.
Depois de um começo conectado, ainda que sutilmente, ao Universo DC, "Sandman" logo colocou-se à parte para abraçar a imaginação infinita de Neil Gaiman. Entre 1989 e 1996, quando encerrou a saga, ele criara uma fantasia gótica moderna, uma mitologia rica e fascinante que hipnotizou gerações de leitores e consolidou os quadrinhos modernos para um público maduro e sofisticado.
"Sandman" decolou na mesma época em que o cinema viu "Batman" tornar-se um fenômeno nas mãos de Tim Burton. Logo, produtores ávidos pela próxima mina de ouro voltaram seu olhar para a saga de Morpheus, supostamente material riquíssimo para uma adaptação em outra mídia.
Neste hiato de três décadas, contudo, dúzias de roteiros e propostas para adaptar "Sandman" passaram pelas mãos de Gaiman. O título, o personagem e todo seu universo pertencem à DC Comics. Num gesto incomum, porém, seus executivos decidiram que nenhum material derivado da série seria produzido sem o aval do escritor.
Essa barreira impediu que propostas pavorosas saíssem do papel, em especial as que colocavam o Mestre dos Sonhos como uma espécie der anti-herói superpoderoso, combatendo, às vezes no braço, um séquito de pesadelos. O tempo foi generoso para que surgisse a oportunidade correta com as pessoas certas.
O que nos leva a "Sandman", que traz o próprio Neil Gaiman à frente, ao lado dois produtores Allan Heinberg e David S. Goyer. A abordagem para levar os quadrinhos ao streaming é enervante de tão simples: adaptar as histórias quase que literalmente, sem firulas, sem invenções, modificando somente o necessário para que elas existam fora do papel.
Foi uma decisão arriscada porém acertada. Dessa forma, "Sandman" preserva o que há de mais precioso nas HQs, que são os diálogos tecidos por Neil Gaiman. A primeira temporada adapta os dois primeiros arcos de histórias, "Prelúdios e Noturnos" e "A Casa de Bonecas". E é uma pérola.
Capturado por ocultistas que pretendiam controlar a Morte, Morpheus (Tom Sturridge) é privado de suas ferramentas - elmo, rubi e algibeira contendo areia - e mantido por um século em uma prisão mística. Com a ausência do Sonho, o mundo atravessa o século 20 experimentando distúrbios relacionados ao sono. O modo que a trama incorpora problemas vivenciados no mundo real é brilhante.
Ao se libertar, Morpheus precisa reestruturar seu reino, o Sonhar, e restabelecer a ordem. Recuperar suas ferramentas é essencial, mesmo que para isso ele precise investigar o submundo místico de Londres (ao lado de Johanna Constantine, interpretada por Jenna Coleman), descer ao Inferno (reino de Lúcifer, papel de Gwendoline Christie) e enfrentar um sociopata (David Thewlis) que teve a mente fragmentada pelo poder dos sonhos.
Nas mãos de uma equipe criativa mais vulgar e imediatista, "Sandman" poderia se tornar um desfile de monstros, deuses e demônios em uma batalha explosiva pelo poder. Em vez disso, Gaiman e cia. preservam a passividade fascinante dos quadrinhos. Mesmo que não se abra mão do espetáculo visual, os conflitos existem na caracterização dos personagens e em sua percepção de mundo.
Até porque Morpheus é um Perpétuo, uma entidade que representa um conceito (no caso o sonho), presente antes do surgimento de deuses. Seus irmãos, entre eles Desejo, Desespero e Morte, regem aspectos básicos a todo ser vivo. Mas nem a eternidade os priva de emoções mesquinhas e reações por demasiado humanas. Essa característica, especialmente em Morpheus, elevam "Sandman" a outro patamar narrativo, dramático e visual.
Se existe uma pequena rusga nessa primeira temporada de "Sandman" é que a segunda parte, que dá mais espaço ao Coríntio (Boyd Holbrook), um pesadelo solto na Terra, não é tão envolvente quanto a primeira. Ainda assim, é uma construção de personagem necessária para assentar blocos narrativos que serão desfraldados ao longo da série.
É uma observação menor depois dos brilhantes cinco primeiros episódios, que lentamente posicionam as peças de "Sandman" no tabuleiro em uma mistura de fantasia gótica e filme de terror. Sem falar de um breve interlúdio, apresentado no sexto episódio, que reafirma o poder da mitologia traçada por Neil Gaiman.
Intitulado "O Som das Asas Dela", é a ponte que conecta as duas partes dessa primeira temporada e consiste em uma caminhada de Sonho por Londres, abalado depois dos eventos que acabara de experimentar, acompanhado de sua irmã mais velha, a Morte (Kirby Howell-Baptiste).
Ela faz o que irmãs mais velhas fazem: ouve, aconselha, dá bronca e o lembra de seu lugar. Tudo isso enquanto faz seu próprio trabalho, apresentado de forma bela e melancólica. É um respiro de efeito emocional devastador, amarrado, dado seus protagonistas, por uma dinâmica familiar inusitada.
É também o momento que resume tudo que Neil Gaiman quis dizer com "Sandman" e com a construção de um mundo em que o sonho não é nem fim nem começo, mas um caminho. Um sonho que finalmente ganha nova vida neste ambiente onírico, suspenso entre ficção e realidade, chamado televisão.
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