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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Marte Um' ilustra a importância da discussão política para a cultura

Deivinho (Cícero Lucas) olha para o alto em "Marte Um" - Embaúba Filmes
Deivinho (Cícero Lucas) olha para o alto em 'Marte Um' Imagem: Embaúba Filmes

Colunista do UOL

06/09/2022 04h00

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"Marte Um" foi escolhido para representar o Brasil no Oscar do ano que vem, concorrendo a uma vaga entre os cinco indicados à estatueta de melhor produção internacional. É a nova tentativa de quebrar um tabu de 24 anos — desde 1999, com "Central do Brasil" (1998), o país não tem um filme na fase final da premiação.


O filme de Gabriel Martins é também o argumento perfeito para ilustrar a importância da discussão de políticas públicas para o fomento à cultura.

"Existem várias formas de pensar política", diz Martins, mineiro de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. "Não tem como existir essa busca por liberdade de expressão e autenticidade de construção narrativa que passe por um cinema sem ter dinheiro público."

Foi com editais de captação de recursos e dinheiro de políticas afirmativas que "Marte Um" deixou de ser uma ideia, rabiscada em 2014 pelo diretor, para se concretizar no final de 2018. A presença do Estado em projetos que não encontram um nicho "comercial" preserva a independência e as ideias, mesmo as mais transgressoras.

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Wellington (Carlos Francisco), Tércia (Rejane Faria) e os boletos em cima da mesa
Imagem: Embaúba Filmes

É uma discussão que se torna ainda mais urgente quando o atual governo federal faz uma manobra financeira para o orçamento do ano que vem que, praticamente, extingue o fundo que alimenta a produção cinematográfica, o Condecine. É uma decisão que alimenta as vontades de uma minoria radical e ignorante e não se sustenta no mundo real.

"Não há um mercado consumidor amplo que se sustente sozinho", explica o diretor. "A rede de distribuição é falha. Hoje, mesmo com a conversa do Oscar, com todo mundo falando do filme, ele não está em cartaz nem em quarenta salas". As dificuldades em tirar um filme do papel, especialmente longe dos polos de produção em São Paulo e no Rio de Janeiro, é real.

"Quem defende a ausência do Estado é leviano, inclusive ignora os empregos gerados e a devolução do dinheiro investido em tributos para a sociedade", continua, ressaltando que o poder privado não alimenta essa indústria. "É um dinheiro que circula e se multiplica, um movimento bom para o artista e também para toda a cadeia ligada a uma produção."

O momento em que "Marte Um" chega aos cinemas é representativo de sua própria proposta. A ideia do longa começou a germinar em 2014, quando o país vivia a euforia de sediar a Copa do Mundo. A festa, porém, também trouxe uma crise de identidade profunda, espelhada no Brasil às vésperas de um novo pleito presidencial.

"Senti que, naquele momento, estávamos nos encontrando ou desencontrando como povo. Começou a ficar difícil não nos posicionar", reflete Gabriel. "O filme foi o espaço para falar sobre isso, sobre como estávamos nos entendendo, traduzido no microcosmo de uma família, na história dos Martins."

"Marte Um" começa justamente na vitória de Jair Bolsonaro como presidente, o que apontou um caminho árduo para boa parte da população trabalhadora do país, que encontra seu espelho na família Martins: o casal Wellington (Carlos Francisco) e Tércia (Rejane Faria), e seus filhos Eunice (Camilla Damião), que quer sair de casa para morar com a namorada, e do caçula Deivinho (Cícero Lucas).

'A resistência estava ali'

Se a história traça um caminho familiar a outros dramas familiares, "Marte Um" se destaca por lidar com sonhos. Deivinho é visto por seu pai como o eixo que sustenta o futuro da família, dirigindo o filho para uma carreira no futebol. Mas o que o garoto quer, o que faz seus olhos brilharem, é mesmo a ciência, e a possibilidade de fazer parte da equipe que um dia pode colonizar Marte.

"O sonho de Deivinho, essa vontade de enxergar além, era o que nos guiava", ressalta o diretor. Esse mesmo otimismo pontuou as filmagens, mesmo com a sombra da eleição de 2018. "Havia tristeza pelo país, mas não podíamos nos deixar invadir por esse sentimento porque a vida seguia."

Logo o espírito da equipe mudou, com o otimismo surgindo naturalmente do processo de estar fazendo algo em que eles acreditavam. "Sabíamos que estávamos construindo algo potente, com afeto, importante para aquele momento", lembra Martins. "A resistência estava ali."

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Gabriel Martins, diretor de 'Marte Um'
Imagem: Embaúba Filmes

A possibilidade de estar entre os cinco indicados ao Osmar de melhor filme internacional reafirmou a certeza do trabalho executado em "Marte Um". "Dentro do histórico de produções que já foram selecionadas pela comissão, nosso filme é diferente", pondera o diretor.

"Não é do Rio de Janeiro ou de São Paulo, e sim de uma produtora de periferia fora do circuito, dirigida por um artista negro", continua. "Acredito que seja uma história importante, um filme que fala de um Brasil tão presente e tão pouco falado. É muito bonito poder representar o país."

"Marte Um", por sinal, tem feito barulho fora de casa. Exibido em festivais de cinema em Los Angeles e em São Francisco, o filme também chamou atenção em janeiro deste ano em uma sessão no tradicional Festival de Sundance, celeiro e vitrine do cinema independente americano, e depois em Nova York em uma exibição no Tribeca Festival.

'A gente vai aprendendo a fazer'

O Oscar, claro, é um animal completamente diferente. Enquanto conversava comigo, Gabriel Martins se preparava para outra reunião em busca de apoio financeiro e financiamento. Afinal, uma campanha para o prêmio da Academia custa caro.

"Desde que o anúncio foi feito eu tenho conversado com pessoas, dentro e fora do mercado", conta. "A gente vai aprendendo a fazer, conversando com quem já passou por esse processo, vendo como é esse caminho." É um trabalho complexo e caro, e o diretor está movimentando as peças: "Não sei se isso vai dar certo ou não, mas temos de jogar o jogo para ganhar".