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'A Mulher Rei' é um filme importante preso em uma estrutura convencional
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"A Mulher Rei" é um filme importante. Sem aspas, sem ironia, sem meias palavras. Ao colocar um exército de guerreiras negras em primeiro plano, a diretora Gina Prince-Bythewood esfarela o padrão do cinema de ação e mostra que abrir as portas para representatividade significa um fôlego criativo e financeiro bem-vindo a Hollywood.
Encabeçando a aventura, Viola Davis empresta não só a credibilidade de uma das atrizes mais espetaculares do cinema moderno, como mostra que não há limites para o poder da mulher em território dominado por décadas basicamente por um único arquétipo. Viola como uma guerreira casca grossa, capaz de moer o inimigo na ponta da espada? A gente acredita!
Inspirado em acontecimentos históricos, "A Mulher Rei" acompanha as Agojie, unidade de combate inteiramente feminina que, ao longo de dois séculos, protegeu o reino africano de Daomé. Ambientado em 1820, o filme coloca Davis como Nanisca, general das Agojie que treina a próxima geração de guerreiras, ao mesmo tempo em que combate o império Oyo, uma nação escravagista.
A trama assume, então, o ponto de vista de Nawi (a ótima Thuso Mbedu). Reticente em se dobrar a um casamento arranjado, a jovem de 19 anos é entregue pelo pai para servir ao rei Ghezo (John Boyega) como parte das Agojie. Ao seu lado descobrimos o rigor do treinamento, o companheirismo entre as guerreiras (em especial Lashana Lynch, que faz a veterana Izogie) e a superação dos obstáculos, durante os exercícios e depois no campo de batalha, que farão sua transição de jovem incerta a mulher empoderada.
A bem vinda exaltação do poder feminino, aliada à celebração do legado e da cultura africana, são o coração de "A Mulher Rei" - não só do filme, como também todo o marketing a seu redor. O ótimo elenco, Viola Davis à frente, corrobora esses pontos ao mostrar seu próprio treinamento para encarar as guerreiras Agojie como um momento de romper seus próprios limites e também fortalecer a sororidade. Esse sentimento de união transborda em cena.
Todo esse movimento espelha a comoção em torno de outro filme que, mesmo confinado aos limites de um grande estúdio, conseguiu projetar sua identidade como ferramenta de marketing e também como fenômeno cultural genuíno. Sem "Pantera Negra" e seu bilhão de dólares nas bilheterias, "A Mulher Rei" teria um caminho espinhoso para sair do papel.
A comparação, entretanto, revela fissuras na armadura do trabalho de Gina Prince-Bythewood. Por trás de todo o verniz que justifica sua própria existência, e por mais que ela seja vital para o cinema, "A Mulher Rei" ainda é um filme de guerra convencional, que não consegue fugir das convenções mais batidas do gênero. Pelo contrário: ele as abraça.
É impossível conceber hoje em dia um roteiro que aborda pontos tão cruciais de nossa sociedade, questões importantíssimas de identidade de gênero, raça e herança cultural, sem assumir também suas indeléveis nuances políticas. O maior triunfo de "Pantera Negra" foi justamente pintar de cinza o campo de batalha, dando motivações reais e, por que não, plenamente justificáveis para seu antagonista.
"A Mulher Rei", por sua vez, teria obrigação de ser ainda mais contundente em sua narrativa por explorar fatos históricos. O Reino de Daomé, hoje a República do Benim, construiu sua economia em torno do comércio de escravos, fonte de renda próspera que foi abolida por pressão do Reino Unido ao menos duas décadas depois dos eventos mostrados no filme.
Não que "A Mulher Rei" tivesse seu foco na história de Daomé ou no comércio de escravos. Foi a atriz Maria Bello (de "Marcas da Violência" e "Os Suspeitos") quem levou a história das Agojie para Viola Davis, e a aventura foi planejada como uma celebração das mulheres guerreiras e também das atrizes negras que as representariam. A bagagem histórica, para o bem ou para o mal, é mero tabuleiro para desenvolver a trama.
Esse recorte, porém, é injetado em um filme de guerra padrão, com direito a vilão malvadão (Jimmy Odukoya, que faz Oba Ade, um general do império Oyo), vingança (Nanisca tem contas a acertar), intrigas palacianas e uma revelação tão piegas que parece pertencer a um melodrama televisivo, e não a uma produção dessa estatura. É o momento em que "A Mulher Rei" quase se rende a uma "disneyficação" que ameaça, como em "Pocahontas", embalar o filme em uma realidade paralela.
A empreitada se sustenta de forma sólida, contudo, pela presença poderosa de Viola Davis. Ela surge como o pilar inabalável que sustenta todo o peso de "A Mulher Rei". Nas mãos de uma atriz menor, seria impossível escapar do estigma de "aventura exótica na África". Com Viola, porém, cada momento ganha outra estatura, cada cena faz sentir seu peso.
É surpreendente, por exemplo, seu trabalho nas três grandes sequências de batalha que emolduram o filme. Existe por óbvio o espetáculo visual que justifica uma superprodução hollywoodiana. Sua intensidade, porém, não é pirotecnia, e sim suporte para Nanisca e Nawi avançarem sua história.
A general Agojie ganha ainda mais camadas quando Viola deixa transparecer, por trás da rigidez de seu papel naquela hierarquia, a melancolia que acompanha a solidão de uma mulher que fez sacrifícios inimagináveis para fazer valer sua voz, para lidar com a dor de seu passado e para se posicionar em uma sociedade ainda liderada por um rei.
Não é difícil entender porque Viola Davis investiu tanto, de seu talento e sua posição, para alavancar "A Mulher Rei". Suas concessões narrativas podem ser o modo de jogar o jogo do cinemão e viabilizar o projeto.
Nem por um segundo, porém, a atriz, ou mesmo a equipe a seu redor, compromete sua integridade artística. Como a personagem que ela interpreta com tamanha fúria e insuspeito coração, Viola Davis mira em uma mudança irrefreável no sistema que sustenta o cinemão pop. "A Mulher Rei" é testemunho de seu triunfo.
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