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'Pantera Negra: Wakanda Para Sempre' é bela homenagem em filme frustrante
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Seria impossível começar a imaginar o quanto foi difícil para os responsáveis por "Wakanda Para Sempre" tirar o filme do chão. A missão do diretor Ryan Coogler foi criar uma sequência para "Pantera Negra" que, além de celebrar o legado de Chadwick Boseman, astro do filme original morto em 2020, servisse como mais uma peça no enorme mosaico do universo cinematográfico da Marvel.
Seu triunfo, entretanto, foi apenas parcial. O novo filme presta uma bela homenagem a Chadwick, e sua presença permeia cada fotograma de "Wakanda Para Sempre".
Toda a trama repousa na morte trágica do Rei T'Challa e as consequências de sua ausência para sua nação e para o mundo.
Essa escolha narrativa, contudo, revela-se uma bênção e uma maldição. Embora esse caminho abra espaço para um filme de inegável impacto emocional, o resultado sofre de ponta a ponta não só em comparação a "Pantera Negra", mas também como um produto cinematográfico.
Não existe em "Wakanda Para Sempre" uma âncora para firmar a trama. Ninguém demonstra uma fração do carisma hipnótico de Boseman. É um filme sem protagonistas, sem a figura do herói. Ao encarar esse vácuo, ele derrapa em sua própria estrada de boas intenções.
Com a ausência do Rei T'Challa defendido por Chadwick, a nova aventura concentra-se na jornada de sua irmã, Shuri, interpretada por Letitia Wright. Cientista de genialidade incomparável, ela sofre um baque logo na sequência de abertura ao tentar reproduzir em laboratório a erva em formato de coração, fonte do poder do Pantera Negra destruída no filme anterior pelas mãos de Eric Killmonger (Michael B. Jordan).
É uma corrida contra o relógio, já que T'Challa sucumbiu a uma doença misteriosa e precisa da erva. O subsequente fracasso de Shuri transforma-se em culpa com a morte do irmão, mergulhando seus súditos da poderosa nação de Wakanda no mais profundo pesar. É uma sequência emotiva, desenhada para ligar as torneiras de lágrimas - isso antes mesmo de o logo da Marvel surgir.
Um ano depois, o reino é comandado pela mãe do herói, a Rainha Ramonda (Angela Bassett). Ela enfrenta a hostilidade das outras nações do planeta, que ambicionam o poderoso minério vibranium, que tem propriedades tanto curativas quanto destrutivas. Exclusivo do solo de Wakanda, o reino rechaça com sua superioridade bélica as tentativas clandestinas de outras potências em colocarem a mão no metal.
Esse equilíbrio tênue é rompido quando essas mesmas forças internacionais descobrem vibranium fora de Wakanda, no leito mais profundo do oceano. Ao tentar extraí-lo, porém, eles disparam a ação de outra nação, que até então vivia oculta nas profundezas do mar: o reino de Talocan, comandado pelo rei-guerreiro Namor (Tenoch Huerta).
A ideia que move "Wakanda Para Sempre" bebe da mesma fonte de seu predecessor. Ryan Coogler usa a fantasia para chamar atenção para problemas bem reais. Em "Pantera Negra" a pauta era o isolacionismo como sobrevivência e o combate ao racismo estrutural ao mostrar Wakanda, uma nação africana, como a maior potência científica, social e econômica do planeta.
Em "Wakanda Para Sempre", o surgimento de Talocan claramente expõe as feridas do colonialismo. A nação submarina é formada por descendentes de povos do império Inca que, para sobreviver à tomada de suas terras e à exposição de doenças do "mundo civilizado" no século 16, são transformados em seres de pele azul e força sobre-humana capazes de sobreviver na escuridão profunda do mar.
A ação de invasores, contínua ao longo de décadas, mostra que o tempo não é capaz de aplacar o desejo de vingança de um povo ferido. É um conceito perigoso que resulta na ideia, defendida por Namor, que um ataque preventivo e fulminante à humanidade é a única forma de garantir a sobrevivência de seu povo. Escolhido soberano, ele é um mutante de orelhas pontudas e asas nos tornozelos que o fazem voar.
Os elementos para desenhar uma aventura em torno de um conceito tão amplo, que triunfou à perfeição em "Pantera Negra", estão na mesa. A teoria, sempre belíssima, é então estrangulada em um roteiro que não faz o menor sentido, mesmo para os padrões de um filme sobre super-heróis de gibis. Personagens vêm e vão sem muita cerimônia, motivações são jogadas ao vento e protagonistas bem definidos mudam a forma de agir sem aviso prévio.
Um exemplo é Riri Williams, adolescente superdotada que "inventou" a máquina capaz de encontrar vibranium (e também uma armadura bem familiar). Por isso, torna-se alvo de todos os jogadores. Ela rapidamente é inserida no "núcleo" de Wakanda, mas sua personalidade não vai muito além do "eu não deveria estar aqui". É irritante, e não ajuda a mostrar nenhum dote dramático da atriz Dominique Thorne - que ela tenha melhor sorte em sua futura série no Disney+.
A própria Shuri sofre com essa mudança brusca de tom. No primeiro filme ela é o gênio que encontrava seu lugar em um laboratório, defensora de uma maior abertura política de Wakanda no mundo. Já aqui ela é mostrada como uma adolescente vingativa e imprudente, uma cientista que troca a lógica pela fúria sem explicação além de um "eu quero ver o mundo queimar". O roteiro a força a abraçar um papel que o próprio filme constantemente empurra para outra direção.
O fã de quadrinhos pode chiar com a total reinvenção de Namor para o cinema, mas as mudanças são uma das poucas decisões criativas bem-vindas em "Wakanda Para Sempre". Ao abandonar a Atlântida - e com isso, todas as comparações com "Aquaman", que chegou aos cinemas primeiro -, criou-se a possibilidade de construir em Talocan um canto do universo Marvel que parece promissor.
A intenção era claramente buscar uma celebração cultural mirando as raízes históricas da América Latina, promovendo um fenômeno como o que seguiu o lançamento de "Pantera Negra". Mas foi um tiro n'água. Falta a Talocan a majestade de Wakanda, falta o senso de deslumbramento que a Marvel já mostrou dominar. Falta escopo, falta grandiosidade. Sobram, por outro lado, cenas de ação pouco inspiradas e nada memoráveis.
É o sentimento que acompanha todo o resto de "Wakanda Para Sempre". O sentimentalismo, certamente muito real para quem estava fazendo o filme, soa plástico ao ser traduzido em cinema. Personagens novos não empolgam: nem Riri Williams, muito menos Namor. Tenoch Huerta, corretíssimo, merecia melhor sorte - "el niño sin amor" é o "salve Martha" da Marvel.
Essa bagunça narrativa, esticada em uma metragem interminável de quase três horas, esconde o esqueleto de uma boa história que nunca desabrocha por não possuir um centro dramático claro. Falta em "Pantera Negra: Wakanda Para Sempre", sem o menor medo de mirar no óbvio, um Pantera Negra.
Ryan Coogler e cia. oferecem uma penca de candidatos (Lupita Nyong'o, Winston Duke, Danai Gurira), mesmo que a escolha seja dolorosamente óbvia (e, diria, equivocada) desde a primeira cena. Mas toda a construção do filme não esconde ser resultado de um remendo. Um remendo trágico, assumido pelo diretor nas circunstâncias mais dolorosas.
Entende-se que o caminho trilhado por "Wakanda Para Sempre" foi o mais natural para homenagear Chadwick Boseman e o legado que ele ajudou a construir. A alternativa, como os produtores deixaram claro dois anos atrás, seria cancelar o projeto em definitivo.
Nessas circunstâncias, apontar o óbvio é um trabalho sujo, mas alguém tem de fazê-lo: a melhor opção seria escolher um novo ator para defender o personagem. Lembrar com carinho o talento de Chadwick Boseman e seguir em frente. "Pantera Negra: Wakanda Para Sempre" prova que um tributo não se torna necessariamente um bom filme. Fica a lição.
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