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'Pinóquio':clássico inspira um dos melhores (e um dos piores) filmes do ano
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Histórias infantis podem ser as mais cruéis. Não é ao acaso. Contos de fadas são cautionary tales, tramas que servem de ensinamento e de alerta, traduzidas em uma linguagem fácil para crianças assimilarem. O medo por muito tempo foi usado como ferramenta para educação.
"As Aventuras de Pinóquio", livro escrito pelo italiano Carlo Collodi em 1883, traduz de forma lúdica os perigos e as consequências em fugir das responsabilidades. Ao distanciar-se das virtudes que fariam dele um "bom menino", como trabalhar, estudar e obedecer a seu pai, Pinóquio só encontra ruína moral e física: ao mentir, seu nariz cresce.
Duas novas versões do texto clássico de Collodi foram produzidas em 2022. A primeira trouxe Tom Hanks como Gepeto, em uma adaptação da animação lançada pela Disney em 1940. A segunda traz a assinatura do gênio Guillermo Del Toro. A diferença entre os dois filmes e, para dizer o mínimo, abissal.
"Pinóquio" conta a história de um boneco de madeira talhado por Gepeto que, graças à magia da Fada Azul, ganha vida. Seu desejo é se tornar um menino de verdade, mas a tentação do mundo moderno, no livro original uma alegoria à industrialização da virada do século 20, desvia o boneco de sua jornada.
Contos de fadas podem e devem ser adaptados para responder a uma demanda de momentos específicos na história. Seu poder de alerta e seu impacto visceral foram diluídos justamente quando Walt Disney comandou a adaptação de diversas dessas histórias em animações que hoje fazem parte do legado do estúdio.
Ainda assim, o "Pinóquio" de 1940 é uma aventura brutal, que submete seu protagonista a provações cruéis. Seu aliado na jornada é o Grilo Falante, que age como sua consciência e tenta, ao longo de sua aventura juntos, direcionar o boneco para um caminho menos autodestrutivo. O final feliz, que se tornaria marca do estúdio Disney, é inevitável,
A versão de Guillermo Del Toro para "Pinóquio", concebida como uma aventura que usa a técnica stop motion de animação, recupera as tintas sociais e políticas mais sombrias da história original. O diretor de "O Labirinto do Fauno" e "A Forma da Água", no entanto, vai ainda mais além.
A ação se desenvolve na Itália fascista dos anos 1930 e é desenhada em cima da dor. A motivação para Gepeto criar o boneco não vem de um artesão inspirado, e sim de um homem amargurado, alimentando há anos o luto pela morte de seu filho, o pequeno Carlo, levado por um bombardeio aleatório.
Gepeto está bêbado quando cria seu Pinóquio, que posteriormente ganha vida pelas mãos de uma fada de beleza quase monstruosa. Ao despertar, ele nem de longe parece um bom garoto maravilhado por um mundo de descobertas, e sim um moleque encrenqueiro e desobediente. O grilo, aqui batizado Sebastian (com voz de Ewan McGregor), é um companheiro de aventuras involuntário e hesitante.
Não há uma imagem sequer no "Pinóquio" de Del Toro que não seja dotada de beleza imensurável. A direção de arte arrebatadora disfarça com puro encanto os temas pesadíssimos abordados por Del Toro. Aqui, a morte é uma constante, uma oportunidade de sofrimento eterno. Cabe a Sebastian transformar a tragédia perene em aprendizado.
Outro acerto é a ambientação na Itália dos anos 1930, quando o ditador Benito Mussolini flertava com o fascismo soprado pela Alemanha nazista. Existe o perigo da guerra, mas também a chance de retratar a militarização estúpida sofrida pelo país.
Um campo de treinamento para crianças representa a cegueira dos devotos de Mussolini, capazes de despachar seus filhos para a guerra sem hesitar. O próprio ditador vira personagem, retratado como o homenzinho ridículo e embriagado pelo poder que ele era. Os paralelos com os "patriotas" acampados em frente aos quartéis da terrinha não passam despercebidos.
Guillermo Del Toro mostra como uma história clássica pode ser retrabalhada para ganhar impacto renovado e significado reforçado. Ainda que dirigido como uma aventura por um mundo desconhecido, seu "Pinóquio" não deixa de ser sobre um garoto confuso, desesperado para ter a aprovação de seu pai e de encontrar seu lugar no mundo.
São temas recorrentes em contos de fada clássicos, diluídos ao longo de anos e anos de adaptações e interpretações sofríveis da história de Collodi. Foi preciso um diretor que age como artesão para recuperar o pulso lúdico e urgente de "Pinóquio", reapresentando uma história secular como se fosse a primeira vez.
O que é, infelizmente, o total oposto do outro "Pinóquio" lançado este ano. Com Tom Hanks à frente, a aventura lançada em streaming prova o quanto o diretor Robert Zemeckis, gênio responsável por "De Volta Para o Futuro", "Uma Cilada Para Roger Rabbit" e "Forrest Gump", precisa urgentemente se reinventar.
Claro que o ônus recai sobre os ombros do diretor. Mas Zemeckis aqui é pouco mais do que um braço de aluguel, um cineasta competente contratado unicamente para criar um produto. Não há uma ideia sequer expressa em seu "Pinóquio", que soma-se à fileira de adaptações live action de animações clássicas do estúdio.
Estes filmes são pouco mais do que produtos para repaginar propriedades intelectuais com um banho de loja moderno. Não que eles dispensem artistas de verdade. "Mogli, o Menino Lobo" viu Jon Favreau usar da tecnologia para humanizar a bicharada fotorrealista. Até "Alice no País das Maravilhas", imperfeições e tudo, não esconde o dedo de Tim Burton.
"Pinóquio", por sua vez, não passa de um cacareco na vitrine. Visualmente é belíssimo, e Tom Hanks é uma graça. Mas não existe absolutamente nenhuma leitura artística que justifique sua existência. A cópia da animação original é quase exata, existe pouco espaço para qualquer deslumbramento. O que sobrou da jornada do boneco que queria ser um menino de verdade foi um pedaço de madeira sem alma.
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