Topo

Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Até os Ossos' é uma história de amor (e canibalismo) bela e perturbadora

Timothée Chalamet e Taylor Russell em "Até os Ossos" - Warner
Timothée Chalamet e Taylor Russell em 'Até os Ossos' Imagem: Warner

Colunista do UOL

01/12/2022 05h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Entrei na sessão de "Até os Ossos" sem saber muito o que esperar. Seria uma história sobre serial killers que se apaixonam enquanto se deleitam com carne humana? Talvez um road movie que esconde uma jornada de descobertas pessoais... Ou ainda um conto sobre os sacrifícios feitos em nome do amor.

O diretor Luca Guadagnino, de "Me Chame Pelo Seu Nome" e do remake de "Suspiria", criou um filme que mistura tudo isso em uma trama que equilibra violência e delicadeza. Um filme de ternura inesperada, ao mesmo tempo extremamente incômodo e perturbador. "Até os Ossos" não segue uma trilha fácil. Não é para quem tem estômago fraco.

Ainda assim, é uma jornada lúdica. Ao contrário de relatos de true crime que infestam a cultura pop contemporânea, existe aqui um elemento sobrenatural que adiciona uma dose de imprevisibilidade. A fome por carne humana de seus protagonistas é uma compulsão irrefreável, um frenesi inexplicável. É como os vampiros de "Crepúsculo", mas feitos de forma inteligente.

Nosso guia é Maren (Taylor Russell), que surge nas primeiras cenas como uma adolescente comum, frequentando um novo colégio e fazendo amigas. Uma escapulida noturna para uma festa do pijama entre meninas revela sua natureza predatória. Seu pai prepara uma fuga apressada, movimento que ele deve ter repetido dúzias de vezes. Existe definitivamente algo errado com Maren.

Tudo isso acontece antes ainda dos créditos iniciais, disparando uma história que espelha várias aventuras de jovens descobrindo seu lugar no mundo. A diferença é que aqui nossa heroína se vê abandonada, com poucas pistas de suas verdadeiras origens, e tomada por uma compulsão canibal que ela ainda não compreende.

A entrada de dois personagens determina o rumo da trama. O primeiro é Sully (Mark Rylance), que literalmente sente o cheiro de Maren e se oferece para guiá-la por um mundo que ele já conhece bem. Entre suas regras está "nunca devore um devorador" e "não precisa matar ninguém", já que o instinto, explica, a conduzirá a quem naturalmente se encontra às portas da morte.

O segundo, entretanto, é quem de fato leva a trama para a estrada. Maren encontra outro "devorador", Lee (Timothée Chalamet), e o acompanha ao se afastar de Sully, que ela acha assustador até para seus hábitos em comum. O novo casal traça um plano: encontrar a mãe da jovem, que a abandonou ainda bebê, para entender esse desejo irrefreável por carne humana.

"Até os Ossos" segue todas as convenções dos gêneros que pretende abraçar. Existe o espírito aventureiro de um road movie e a delicadeza da descoberta do primeiro amor. Existe o impacto da descoberta das próprias raízes e o terror em se tornar alvo de um psicopata. E existe, claro, o choque e a repulsa das cenas de canibalismo, em que Guadagnino revela muito ao mostrar muito pouco: as cenas de canibalismo, mesmo em pequenas doses, são difíceis de testemunhar.

O resultado é um filme de atmosfera trágica, uma agonia advinda da mistura de belos corpos em belos cenários com a sujeira causada pelo derramamento de sangue. Nesses momentos, "Até os Ossos" revela um lado cru e repugnante, um ataque aos sentidos em que praticamente conseguimos sentir o odor metálico do sangue seco impregnado em quem se alimentou de carne humana.

A combinação do romance adolescente com o terror explícito faz de "Até os Ossos" um filme estranho, atraente e repulsivo na mesma medida. Nas mãos de um cineasta menos sensível e mais visceral, a experiência seria insuportável. Não é o caso: mesmo assumindo uma trama de difícil digestão, o que se sobressai é a reflexão sobre a necessidade de conexão trazida pela descoberta do amor.