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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O ótimo 'Ela Disse' detalha a investigação que derrubou um predador sexual

Zoe Kazan e Carey Mulligan em "Ela Disse" - Universal
Zoe Kazan e Carey Mulligan em 'Ela Disse' Imagem: Universal

Colunista do UOL

08/12/2022 05h00

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Harvey Weinstein era um dos produtores mais poderosos de Hollywood. Por décadas à frente da Miramax, ele equilibrou sucesso financeiro e aplausos da crítica, revelando uma geração de artistas do calibre de Kevin Smith e Quentin Tarantino. Tinha fama de durão, mas isso pouco importava quando a elite do cinema, estatueta do Oscar em mãos, o agradecia.

Essa era a face pública. Por trás das cortinas, Harvey Weinstein era também um monstro, um predador sexual que sistematicamente se valia de sua posição de poder para estuprar dúzias de mulheres. De assistentes que trabalhavam em seu estúdio a atrizes do primeiro time, as vítimas se recolhiam em culpa, medo, vergonha e silêncio, indefesas ante a influência devastadora do produtor.

Os anos de abuso sexual eram encobertos por um sistema de proteção instaurado nos escritórios luxuosos da Miramax, onde milhões de dólares foram gastos para comprar o silêncio de mulheres que buscavam, em vão, reencontrar sua voz.

Essa muralha foi rompida com uma reportagem do "The New York Times", em que as repórteres Megan Twohey e Jodi Kantor investigaram as ações de Weinstein, fazendo com que, pela primeira vez, as vítimas pudessem vislumbrar alguma chance de justiça. Foi o começo do movimento #MeToo e uma mudança drástica na cultura corporativa global.

Dirigido por Maria Schrader, "Ela Disse" relata justamente o trabalho de Megan e Jodi. Em pouco mais de duas horas, o filme traça minuciosamente os passos da investigação jornalística, em um clima de tensão crescente quase insuportável, mesmo se tratando de uma história em que sabemos o final. O que importa, aqui, é a jornada.

Poucas vezes o cinema mostrou, de fato, como funciona o trabalho de repórteres ao longo de uma apuração tão delicada. São testemunhas que se recusam a falar, documentos que precisam ser levantados, provas que precisam ser amealhadas.

A pressão absurda e a tenacidade incansável são capturadas pela interpretação estelar de Carey Mulligan e Zoe Kazan. Em uma narrativa nunca menos que incômoda e igualmente hipnotizante, as atrizes abraçam o papel da dupla de repórteres ora com ternura, ora com fúria. A cada momento, estamos ali, a seu lado, recebendo a mesma gama de emoções.

Construir "Ela Disse" de forma quase documental foi uma decisão criativa acertada por parte de Schrader. Não há no roteiro de Rebecca Lenkiewicz, que adapta o livro escrito por Twohey e Kantor, gordura desnecessária. Não existe encenação dos abusos ou tramas paralelas com múltiplos personagens. Não há verniz cinematográfico para dourar a história ou um final bombástico.

O que "Ela Disse" traz é foco inflexível e respeito absoluto pelas vítimas. A diretora traz uma clareza de propósito e um compromisso inegável com a integridade jornalística: o filme trabalha com fatos, por mais incômodos e repulsivos que eles possam ser.

A abordagem sem freios traz momentos em que as ações de Weinstein são relatadas, por vezes com detalhes grotescos. É um caminho necessário para ilustrar exatamente o tormento pela qual essas mulheres passaram e a injustiça à qual foram submetidas, não raro sob a cumplicidade do batalhão de advogados e assistentes que desviavam o olhar do comportamento do produtor.

Não é uma narrativa que acompanhamos à distância. A cada passo, Zoe Kazan e, principalmente, Carey Mulligan, providenciam uma âncora emocional e narrativa que não deixa nossa atenção desviar. O elenco inteiro, de Patricia Clarkson a Andre Braugher (o editor de poucas palavras do "NYT"), é irrepreensível. Jennifer Ehle, como uma das vítimas de Weinstein que decide contar sua história, vai quebrar seu coração e estimular sua fúria por justiça.

Se existe um revés em "Ela Disse", ele não está ligado a seus muitos predicados. Ao contrário de outro filme que aborda uma cobertura jornalística contundente, o oscarizado "Spotlight", os eventos narrados no filme de Maria Schrader não chegaram à sua conclusão. Pelo contrário: a história de Harvey Weinstein continua nos noticiários, assim como a de suas muitas vítimas.

Talvez essa proximidade tenha mantido o público afastado de "Ela Disse" nos cinemas. Lançado no começo da temporada mais nobre do ano, o filme encontrou salas vazias, o que diminui suas chances de reconhecimento em premiações como o Oscar. Ou foi isso, ou a plateia decidiu que não tinha estômago para encarar uma história tão desagradável em sua proximidade.

Uma história que, por fim, precisa ser contada - justamente por ainda não ter sido encerrada. Harvey Weinstein, hoje preso e enfrentando uma sentença que pode lhe custar mais de duas décadas na prisão, é o símbolo do abuso sexual na indústria do cinema.

Mas ele não é o único monstro que usa de seu poder e da proteção de um sistema conivente para fazer mais vítimas e destruir mais vidas. "Ela Disse" pode ser incômodo. Pode, também, abolir o espetáculo em nome da veracidade. Mas não deixa de ser um filme poderoso, emocionante, revelador e, em uma sociedade sempre disposta a olhar para o outro lado, absolutamente necessário.