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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O maior mistério do excepcional 'Glass Onion' é sua ausência do cinema

Daniel Craig como Benoit Blanc em "Glass Onion" - Netflix
Daniel Craig como Benoit Blanc em 'Glass Onion' Imagem: Netflix

Colunista do UOL

24/12/2022 06h41

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"Glass Onion" é uma delícia de filme. Tem um elenco bacana, amarrando com diálogos super espertos uma trama de mistério em que nada é o que parece ser. Traz à frente Daniel Craig, um dos astros mais carismáticos do cinema. É o tipo de experiência perfeita para ser compartilhada em uma sala escura, dividindo as surpresas com um público igualmente entretido.

Por um desses mistérios insondáveis da vida - bom, da indústria do entretenimento -, essa continuação de "Entre Facas e Segredos" passou reto pelos cinemas, aterrissando direto em uma plataforma de streaming. Bom, a bem da verdade não existe assim nenhum drama além do óbvio: a Netflix pagou a conta, o filme virou diversão para o conforto do sofá da sala.

O que é, na falta de uma palavra melhor, um pecado. Outros filmes com a assinatura do gigante do streaming, como os recentes "Pinóquio" e "Bardo", tiveram chance de uma carreira nos cinemas. "Glass Onion" teve um lançamento ligeirinho nas salas americanas, provavelmente para cumprir as regras da temporada de premiações do fim do ano, e logo tomou seu lugar na TV.

A ironia é que "Glass Onion" é justamente o filme perfeito para alavancar um retorno do público ao cinema. Nessa ressaca da pandemia de Covid, as grandes propriedades intelectuais tem garantido o sustento do mercado. O revés é que se cria um funil: quem não tiver interesse em super-heróis ou filmes de terror ou a continuação de alguma produção consagrada, termina sem opções.

O cinema original precisa, portanto, desse respiro. Não faltam evidências, como o sucesso inesperado pero no mucho de "Tudo em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo". Não que os exibidores nos EUA não tenham pedido para que "Glass Onion" tivesse vida além da semana planejada para ficar em cartaz. A Netflix, entretanto, bateu o pé e seguiu com seu plano.

Ainda assim, na semana do feriado de Ação de Graças, e na esteira do segundo "Pantera Negra", o filme rendeu respeitáveis US$ 15 milhões em apenas 600 salas. A título de comparação, a animação "Mundo Estranho", da Disney, embolsou cerca de US$ 18 milhões no mesmo período, com a pegadinha de estar ocupando mais de 4 mil salas. A pergunta que continua a assombrar é: "E se?".

O entusiasmo acerca de "Glass Onion" não é infundado. O diretor e roteirista Rian Johnson, talvez inspirado por histórias com Hercule Poirot ou Miss Marple, construiu aqui mais um mistério divertido e envolvente. É a mesma fórmula que ele usou em "Entre Facas e Segredos": um assassinato, um caminhão de suspeitos e a habilidade dedutiva de Benoit Blanc para resolver a charada.

Blanc, claro, é o alter ego de Daniel Craig. O ator despiu-se da sofisticação perigosa de James Bond e fez do detetive de trejeitos suaves e sotaque sulista enigmático um personagem igualmente emblemático. Fica evidente que Craig está se divertindo, e seu entusiasmo contagia seus colegas de elenco.

A turma aqui é igualmente afiada, com Edward Norton à frente de um mistério que envolve Kate Hudson, Dave Bautista, Kathryn Hahn e a sensacional Janelle Monáe. A trama os reúne na ilha particular do bilionário defendido por Norton, que junta os amigos em um fim de semana para resolver o mistério de seu próprio assassinato. Uma encenação, claro, que logo escala para um crime bastante real.

Não tarda para Rian Johnson revelar as camadas de sua história como... bom, como uma cebola: um "cebolão de vidro" é o centro de toda a movimentação. O diretor se diverte sobrepondo tramas, expondo detalhes que estavam bem à nossa frente o tempo todo e puxando nosso tapete até uma conclusão explosiva. No meio, ele encontra espaço para colocar referências a "Magnólia", transforma Jared Leto e Jeremy Renner em fundadores de startups e ainda descola pontas para Ethan Hawke e Hugh Grant.

"Glass Onion" seria uma sessão de cinema perfeita, nem que fosse pelos "ohhs" e "ahhs" que a plateia soltaria ao longo do caminho. Mas não dá para culpar Johnson por, assim como colegas de profissão como Martin Scorsese e David Fincher, optar por uma parceria com a Netflix. Além da liberdade criativa e da ausência de pressão por resultados na bilheteria, a plataforma abriu a carteira sem hesitar.

A Netflix comprou os direitos de duas continuações de "Entre Facas e Segredos" em 2021 e colocou duas condições: que os novos filmes tivessem orçamento semelhante ao do original de 2019 - em torno de US$ 40 milhões - e que Daniel Craig fizesse parte do pacote. No contrato, Craig, Johnson e o produtor Ram Bergman embolsaram cerca de US$ 100 milhões cada um.

É fácil, portanto, reclamar da ausência de "Glass Onion" do cinema quando somos plateia. Fazer filmes originais é missão quase impossível na Hollywood do novo século, e cineastas precisam agarrar qualquer oportunidade para realizar sua visão artística com um parceiro que te deixa trabalhar em paz.

A esperança é que ainda temos ao menos uma aventura de Benoit Blanc à frente. Vai que as estrelas se alinham e o terceiro "Knives Out" termina na tela grande? Não custa sonhar. No andar da carruagem, porém, eu esperaria sentado - de preferência no sofá da sala.