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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Holy Spider': religião e assassinato se confundem em thriller perturbador

Zar Amir Ebrahimi em "Holy Spider" - MUBI/O2 Play
Zar Amir Ebrahimi em 'Holy Spider' Imagem: MUBI/O2 Play

Colunista do UOL

18/01/2023 12h00

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Nas ruas de Mexede, cidade sagrada no Irã, as mulheres andam com medo. Mais de uma dezena de jovens foram abduzidas à noite, seus corpos estrangulados encontrados na manhã seguinte, desovados no lixão.

Dois detalhes deixam o caso ainda mais perturbador. Primeiro, todas as vítimas eram prostitutas, buscando clientes em uma área específica da cidade. Segundo, as autoridades locais não parecem nem um pouco empenhadas em capturar o assassino.

Em seu terceiro longa, o diretor iraniano Ali Abbasi, do excepcional "Border", recorre às próprias lembranças para construir a trama de "Holy Spider". Ele estudava em Teerã na virada do século quando um assassino em série escolheu prostitutas como alvo. Ao mesmo tempo, o futuro cineasta observou uma sociedade extremamente conservadora fazer do criminoso um herói, mesmo depois de sua captura e confissão.

Embora tivesse imaginado seu filme como um thriller mais próximo dos acontecimentos reais, Abbasi percebeu que, pela falta de documentos sobre o caso para amarrar a história, ela seria mais eficiente como ficção. A adição de uma repórter investigando os assassinatos emprestou um ponto de vista externo ao caso, ao mesmo tempo que ampliou suas possibilidades dramáticas.

Não espere em "Holy Spider", contudo, um suspense em que o serial killer é apresentado como um sujeito sofisticado, de inteligência acima da média, humanizado por seu charme. Não é Hannibal Lecter ou o John Doe de "Se7en". Aqui ele é a mais banal das pessoas. Justamente por isso, ele se torna ainda mais assustador.

Saeed Hanael (Mehdi Bajestani) é um mestre de obras em Mexede que sofre de stress pós traumático como veterano da Guerra Irã-Iraque. Por ter retornado ileso do conflito, ele se acha indigno, impedido de se martirizar por sua pátria. Como uma espécie de compensação macabra, Saeed mata prostitutas, descritas por ele como "mulheres corruptas e impuras". Seria, portanto, uma missão divina.

No caso, uma missão divina e desleixada, já que Saeed segue uma rotina a cada nova vítima: ele as aborda em uma mesma área movimentada da noite de Mexede, as leva a seu apartamento quando sua esposa e filhos visitam parentes, as estrangula com seus próprios lenços e se desfaz do corpo na mesma área decrépita da cidade. No dia seguinte, liga para um repórter policial e conta o que fez.

A chegada da jornalista Arezoo Rahimi, enviada por um grande jornal de Teerã, (Zar Amir Ebrahimi, que teve sua performance premiada em Cannes) chacoalha as autoridades. Ela questiona como, depois de meses, o caso permanece sem pistas. A própria Rahimi levanta, com uma breve investigação, o modus operandi do assassino. Sendo mulher, contudo, ela é continuamente ignorada e humilhada pela polícia e pelo clero.

É nesse ponto que "Holy Spider" deixa de ser simplesmente um thriller. Ali Abbasi é claramente fascinado pela história do serial killer, mas aos poucos ele concentra seu foco em como os crimes proliferam ao encontrar uma sociedade complacente. A brutalidade dos assassinatos perpetrados por Saeed é banalizada - e incentivada! - pelo descaso crescente da população.

Essa escolha dramática ecoa de forma ainda mais contundente agora, quando o Irã mais uma vez ganha os holofotes mundiais ao endurecer seu regime teocrático, condenando à morte homens e mulheres que levantam sua voz em protesto. A temperatura tornou-se insuportável desde setembro do ano passado, quando a jovem Maha Amini, de 22 anos, morreu na prisão após ser detida por violar o código de vestimenta do país.

"Holy Spider", que foi rodado na Jordânia em 2021, termina por radiografar uma sociedade dividida pela devoção religiosa e pela pressão internacional de entidades dos Direitos Humanos. É uma história providencial que filtra pelo prisma da ficção um recorte social alimentado pela ignorância religiosa. Em uma teocracia, a fé e a lei habitam o mesmo ar rarefeito. A violência institucionalizada, como reflete o filme, alimenta seu próprio legado em vez de se dissipar.

Ao usar a linguagem cinematográfica para amplificar um horror assustadoramente real, Abbasi, que reside na Dinamarca há mais de uma década, coloca a misoginia estrutural de seu país natal sob uma lupa. É um movimento corajoso - a maior evidência foram as notas de desagravo do governo iraniano quando "Holy Spider" foi exibido ano passado em Cannes.

A pressão maior, entretanto, repousou nos ombros de Zar Amir Ebrahimi. Desde sua premiação em Cannes, a atriz (que também é produtora e diretora) recebeu mais de duzentas ameaças, especialmente por retratar uma mulher independente em um país que ainda lhes nega a voz. Com "Holy Spider", a população feminina, sufocada e humilhada por uma sociedade arcaica, consegue gritar - mesmo que por um momento breve.