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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'TÁR': Cate Blanchett conduz experiência cinematográfica quase perfeita

Cate Blanchett em "TÁR" - Universal
Cate Blanchett em 'TÁR' Imagem: Universal

Colunista do UOL

26/01/2023 06h00

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Lydia Tár, um dos maiores gênios da música contemporânea, está na prestigiosa escola de artes Juilliard, em Nova York, ministrando uma aula como professora convidada. A certa altura, sua atenção converge para um jovem aluno, pangênero e progressista, que se diz totalmente desinteressado pelo trabalho de compositores brancos e cisgênero como Bach.

Aos poucos, a atmosfera no ambiente começa a pesar. Tár desmantela os argumentos do jovem candidato a regente, ao mesmo tempo em que ignora a cartilha social contemporânea, que expõe figuras como Bach, um homem que viveu há séculos, sob a ótica e o julgamento reservado para a implacável cultura do cancelamento.

Em vez disso, Lydia deixa claro que, quando a plateia está em silêncio e os músicos seguem atentos à condução de um maestro, só existe uma coisa que realmente importa: a música. Quando o aluno finalmente se vê rendido e, humilhado, retira-se da aula - não sem antes disparar impropérios -, ela encerra o caso: "Você precisa parar de viver em função de redes sociais".

Existe um apuro técnico superlativo demonstrado pelo diretor e roteirista Todd Field permeando cada segundo de "TÁR". É um cuidado raro com forma e narrativa, uma atenção para detalhes e planejamento, deixada evidente nessa cena, logo no começo do filme, em que absolutamente nada é ao acaso.

Com a câmera nervosamente nos posicionando de agentes a observadores ao longo da cena, Field nos diz tudo que precisamos saber sobre sua protagonista, uma mulher de atitude passivo-agressiva e superioridade moldada por uma inteligência mordaz. Todo esse conhecimento, porém, será lentamente esfarelado em um filme nervoso, estranho, sem catarse, crescendo ou clímax.

"TÁR" vai além de mera experiência cinematográfica. Todd Field, aqui em seu terceiro longa (ele também assina os ótimos "Entre Quatro Paredes", de 2001, e "Pecados Íntimos", lançado cinco anos depois), realiza um estudo de personagem de extrema sofisticação e complexidade. Não é uma jornada sempre fácil, tampouco sua protagonista busca nossa simpatia. Mas é cinema adulto, hipnótico e sem concessões.

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O diretor Todd Field no set de 'TÁR' com Cate Blanchett
Imagem: Universal

Ao longo de quase três horas, "TÁR" constrói uma personagem de camadas quase imperceptíveis, um ser humano com dores e fraquezas, blindadas por uma couraça de arrogância e superioridade. Quando a percepção externa sobre sua natureza está solidificada, Field então trata de desconstruí-la por dentro, desnudando as imperfeições e revelando a pessoa por trás do mito. Assim como Bach, o que realmente importa, o que sobra, é a arte.

Seria impossível imaginar qualquer outra atriz no papel de Lydia Tár que não fosse Cate Blanchett. Não é uma hipérbole. Existe na personagem uma certa frieza, um humor ácido, combinado com a certeza de estar num patamar acima de seus pares. Poucos se igualam a ela em sua área. Poucos arriscam habitar a mesma atmosfera.

A atriz australiana, revelada ao mundo em 1998 em "Elizabeth", obviamente não projeta tamanha arrogância. Mas é certo que a perfeição com que ela define cada movimento em "TÁR" joga seus pares em um eclipse. Não somente por sua performance assombrosa, mas também pela dedicação com que ela, ao lado de Todd Field, construíram a personagem até o limite da ficção.

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Lydia Tár e a solidão da criação
Imagem: Universal

Premiadíssima e respeitada em todo o mundo, Lydia Tár é pianista, compositora e regente, tendo emprestado seu talento em todos os palcos, rodando o mundo à frente de suas orquestras de maior prestígio. Responsável pela Filarmônica de Berlim, ela se prepara para uma performance da "Sinfonia N° 5" de Gustav Mahler, uma peça de altíssima complexidade. Ao mesmo tempo, organiza o lançamento de sua biografia.

Sua personalidade é dinâmica e severa tanto no campo profissional quanto em sua vida pessoal, em que divide a criação de uma filha com sua esposa, Sharon (a atriz alemã Nina Hoss). Esse rigor, entretanto, esconde pequenas fissuras que logo serão impossíveis de camuflar. A principal é seu envolvimento com jovens artistas ao longo de sua carreira, uma indiscrição que evolui para uma tragédia, minando a rotina meticulosamente desenhada por Tár.

Enquanto seu mundo de certezas erode irreversivelmente, Tár busca conforto na música, em especial em uma composição que ela não consegue finalizar. Mas uma hipersensibilidade ao som, e momentos em seu cotidiano que podem ou não ser alucinações, mostram que não existe refúgio quando a arte é corrompida pelo ego e pelo poder.

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Cate Blanchett abraça o infinito em 'TÁR'
Imagem: Universal

Todd Field escreveu "TÁR" especificamente para Cate Blanchett, e deixou claro que o filme não existiria caso ouvisse uma negativa da atriz. Para ela, deve ter sido difícil ignorar matéria-prima tão irresistível, enriquecida pelo espírito colaborativo do diretor. Embora houvesse rigor com o roteiro, a simbiose entre criador e musa elevou o material.

Juntos, eles desenharam uma vida para Lydia Tár: quem ela era, de onde veio e como reconstruiu sua personalidade pública, sublimando sua própria origem. Embora essa pesquisa não seja explicitada no filme, ela conduziu a direção de Field e a performance de Blanchett. É o elemento invisível que faz de um filme uma obra-prima que reverbera muito depois de as luzes acenderem.

"TÁR", assim como pérolas contemporâneas como "Sangue Negro" ou "Parasita", abraça temas e discussões atemporais, radiografando o próprio espírito do tempo. Cinema de verdade, maduro e complexo, surpreendente e poderoso. Não vai ganhar o Oscar de melhor filme, mas não se engane: nenhum outro entre os indicados sequer arranha sua perfeição.