Topo

Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Os Banshees de Inisherin': Quando o fim de uma amizade passa dos limites

Brendan Gleeson e Colin Farrell em "Os Banshees de Inisherin" - Searchlight
Brendan Gleeson e Colin Farrell em 'Os Banshees de Inisherin' Imagem: Searchlight

Colunista do UOL

31/01/2023 05h12

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O diretor Martin McDonagh tem pressa. Mal começa seu "Os Banshees de Inisherin" e ele já coloca na mesa o conflito que conduz seus personagens. Sem maiores explicações, o músico Colm Doherty (Brendan Gleeson) deixa de falar com Pádraic Súilleabháin (Colin Farrell), até então seu melhor amigo. Ele não quer sua companhia, sua amizade, nada.

De imediato, compartilhamos a confusão de Pádraic, sujeito levemente abobado que vive com sua irmã. A atitude de Colm, mesmo com sua explicação canhestra, parece birra. À medida que a trama avança, porém, "Os Banshees de Inisherin" desnuda uma das desconstruções mais devastadoras da solidão masculina arriscadas pelo cinema moderno.

O que era engraçado passa a flertar com a tragédia. As risadas são convertidas em melancolia. O atrito entre os protagonistas, defendidos com brilho por Farrell e Gleeson, aos poucos se afasta da simples rixa entre amigos para tocar em questões mais profundas, como a perda da inocência e a urgência em deixar um legado. Questões universais, encapsuladas em uma ilha remota na costa da Irlanda.

Ambientado nos anos 1920, com a guerra civil irlandesa ecoando à distância, "Os Banshees de Inisherin" tem seu clima de isolamento acentuado por sua locação. A trama busca uma equivalência com o conflito histórico ao defender que o atrito só existe quando um lado da disputa se recusa a conhecer as motivações do outro. Em um pedaço de terra cercado pelo oceano, portanto, não há opção a não ser o entendimento.

McDonagh, por sua vez, subverte essa lógica. "Banshees" não busca resolver a disputa, e sim entender seus efeitos em seus protagonistas. Colm e Pádraic são desenvolvidos de tal forma que é impossível tomar lados. É perfeitamente razoável entender ambos. Também é compreensível que a situação só possa escalar para os extremos.

"Os Banshees of Inisherin" é construído como fábula. A ilha fictícia em que a história se desenvolve é recheada de personagens alegóricos cuja função dramática é alimentar o dilema dos protagonistas. Cada um é defendido por um ator em seu melhor momento, escolhidos a dedo e conduzidos com inspiração com McDonagh. Não é ao acaso que todos estão indicados ao Oscar.

Como Kerry Condon, que traz ternura e humanidade como Siobhán, irmã de Pádraic. Entre todas as peças nesse tabuleiro, ela surge como defensora da razão. Já o excepcional Barry Keoghan é Dominic, o "idiota da vila" que não raro serve como nosso espelho no conflito, "mediando" os dois lados enquanto lida com seus próprios demônios.

banshees martin - Searchlight - Searchlight
O diretor Martin McDonagh e Colin Farrell nas filmagens de 'Os Banshees de Inisherin'
Imagem: Searchlight

Colin Farrell e Brendan Gleeson, por sua vez, já haviam dividido a cena em outro trabalho de Martin McDonagh, o excepcional "Na Mira do Chefe", de 2008. Em "Banshees", contudo, o equilíbrio de suas interpretações é não só o combustível da trama, como também a força que nos faz comprar suas guinadas mais absurdas.

Afinal, a linha que Colm está disposto a cruzar para afastar o amigo de sua vida em definitivo é absurda: cada vez que Pádraic lhe dirigir a palavra, ele promete cortar um de seus próprios dedos. Um olhar para a feição de granito de Gleeson, adornada por lampejos da turbulência profunda que o perturba, basta para termos a certeza de que não é blefe.

Mas é Colin Farrell quem conduz o fragmento de história mais avassalador de "Os Banshees de Inisherin". Definido por sua rotina, Pádraic tropeça com a decisão do amigo, e sua confusão toma rumos desoladores à medida que a nova realidade impõe sua mão pesada.

Farrell nunca esteve tão vulnerável ou tão exposto. É uma atuação corajosa, delicada e arrebatadora em sua verdade absoluta: não existe dor mais insuportável e silenciosa do que a perda da inocência. Já estivemos lá. Por isso, choramos com ele.