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'Beau Tem Medo': Joaquin Phoenix precisa de terapia em viagem muito errada
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Ari Aster tem problemas. Seu terceiro longa, "Beau Tem Medo", é menos um filme e mais um manifesto, um pedido de socorro escancarado para consumo público. Em uma jornada tão visualmente estimulante quanto criativamente vazia, o cineasta, um dos nomes mais festejados do cinema contemporâneo, espreme seus fantasmas pessoais em busca de ideias. Em vão.
Antes de mais nada, sejamos honestos. A dor, as angústias, o sofrimento - tudo é combustível para a arte. Quando não existe conflito, o resultado é a alegria de plástico de um trio elétrico. Mas uma coisa é canalizar o que te rói por dentro como reflexão. Outra é ser masoquista para satisfazer os próprios caprichos.
O "teste do terceiro filme" é crucial para jovens artistas que buscam entender essa distinção. Quentin Tarantino, por exemplo, abriu as portas com "Cães de Aluguel" e conquistou o mundo com "Pulp Fiction". Seria fácil mergulhar em uma egotrip, mas ele preferiu pagar tributo a um de seus ídolos, Elmore Leonard, adaptando o romance "Rum Punch" como o thriller "Jackie Brown" em seu trabalho número três.
Ari Aster, por sua vez, conquistou espaço ao ajudar a redefinir o cinema de terror do novo século com "Hereditário" e, depois, com "Midsommar". Sua estética de conto de fadas, aliada a um apuro visual inclinado para o macabro e o fantástico, logo o colocou entre os cineastas mais requisitados em Hollywood. Ele, obviamente, sentiu esse empoderamento.
"Beau Tem Medo" é resultado dessa liberdade, que por vezes beira a auto-indulgência. O filme tem origem em um de seus curtas, "Beau", rodado em 2011. A base, descrita pelo cineasta como um "pesadelo cômico", é a mesma: o protagonista precisa chegar até a casa de sua mãe. A execução, entretanto, traz um fluxo de ideias que nem sempre encontram algum sentido.
Órfão de pai e geograficamente distante da mãe, Beau é um sujeito ansioso a quem seu terapeuta receita drogas experimentais. Ele vive em um pedaço totalmente depredado de uma metrópole, não muito diferente do atual centro da cidade de São Paulo, em que imperam sujeira, violência e a total incompetência do poder público.
O atraso para um voo agendado até a cidade de sua mãe dispara uma sucessão de erros que pode ser descrita como o caos total e absoluto. Beau parece perder o controle de sua vida num piscar de olhos, quando os poucos elementos que pareciam sob controle desmoronam em uma série de decisões equivocadas. Este primeiro ato é brilhante e antecipa uma jornada surpreendente.
O segundo ato traz o caos substituído pela confusão. Beau é atropelado e acolhido por um casal - Nathan Lane e Amy Ryan - para se recuperar. O que parece um momento de paz, mesmo com a urgência da viagem adiada, logo se revela uma prisão passivo-agressiva. Existe semelhança distante com o desespero do protagonista de "Depois de Horas", de Martin Scorsese, mas a sugestão não se sustenta.
Quando o filme engata o terceiro ato, a estrutura dramática já foi às favas. Personagens entram e saem de cena com zero explicação ou impacto, caminhos narrativos são sugeridos e logo abandonados. Existe, sim, beleza no caos. Em "Beau Tem Medo", porém, ela é atropelada pela desordem, sublinhando a linha tênue entre genialidade criativa e virtuosismo vazio.
Sustentando todo o peso do filme está Joaquin Phoenix. É absolutamente compreensível sua escolha para mergulhar na viagem de Ari Aster. No papel, "Beau Tem Medo" é o sonho de todo ator: um personagem complexo e inusitado, reflexo extremamente corajoso e sincero das inquietudes de um artista, que calha de ser um dos nomes mais quentes do cinema atual.
É Phoenix quem impede que o filme desmorone de vez, seu trabalho faz com que as três horas de projeção jamais sejam enfadonhas. Ele é um ator colossal, mesmo que seja traído pelo texto. Beau, como personagem, é um saco de pancadas físicas e emocionais, alvo do sadismo e da crueldade de seu criador.
Quando o filme se torna uma sessão de terapia por associação livre, em que sequências desencontradas existem unicamente porque Aster precisa exorcizar algum demônio pessoal, fica difícil ter qualquer empatia. "Beau Tem Medo" não faz questão de dividir a função de seus percalços com a plateia. Nossa atenção, por sua vez, aos poucos evapora.
"Beau Tem Medo" é uma experiência densa por tratar abertamente de temas obviamente muito pessoais. Se abrir dessa forma requer coragem, sua sinceridade é quase como um pedido de ajuda. Moldar um estado emocional fragmentado em forma de filme é obviamente trabalho de uma mente ambiciosa e de muito talento. Mas essa honestidade de nada vale quando o foco simplesmente não está lá.
Algumas pessoas fazem terapia para trabalhar suas questões mais íntimas. Outras, por óbvio, fazem filmes - no caso, um filme muito bonito, muito frustrante e muito estranho. Quem tem "Hereditário" e "Midsommar" no currículo merece todo o benefício da dúvida. Ao fim de "Beau Tem Medo", porém, concluímos que Ari Aster precisa bater um longo papo com sua mãe. De preferência, acompanhados de um terapeuta.
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