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Sem uma gota de charme, novo 'A Pequena Sereia' afunda em oceano profundo
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"A Pequena Sereia" é um produto com defeito. Mesmo em uma linha de produção azeitada como a do estúdio do Mickey, vez por outra uma peça não se encaixa na engrenagem. É o caso deste filme de Rob Marshall, que chega aos cinemas sem charme, sem carisma, sem dizer a que veio. Um produto sem propósito.
Desde que ficaram populares no novo milênio, em especial depois de "Cinderela" em 2015, as adaptações live action de animações Disney se tornaram uma "série" tão lucrativa quanto Star Wars ou o universo Marvel. Refilmagens, contudo, precisam de uma fagulha criativa que justifique sua existência, elemento que não é suprido pela mera tradução de desenho animado em gente de verdade.
Foi assim, por exemplo, quando Jon Favreau deu um salto tecnológico ao dirigir "Mogli, o Menino Lobo" em 2016. Ou com a reimaginação de uma vilã clássica em "Cruella" (2021). É o mesmo impulso artístico que transbordou de paixão pela obra original, como em "A Bela e a Fera" (2017), e que reinventou uma fábula como fantasia de ação em "Meu Amigo, o Dragão" (2017).
"A Pequena Sereia", por sua vez, é inerte. Ele simplesmente existe como produto, arrastando por intermináveis duas horas e quinze minutos um conto de fadas que, convenhamos, não envelheceu muito bem. Os números musicais raramente empolgam, o elenco parece sofrer de sonambulismo coletivo e a tradução do traço original para criaturas "vivas" é, em sua maioria, medonha.
Existe, claro, importância histórica atrelada ao desenho animado original. Quando "A Pequena Sereia" chegou aos cinemas em 1989, a Disney há muito deixara de ser um colosso criativo e financeiro com suas animações. A vivacidade de clássicos como "Bambi", "Alice no País das Maravilhas" e "A Bela Adormecida" chegou esfarelada aos anos 1980.
Foi quando os diretores Ron Clements e John Musker, ao lado do então presidente do estúdio, Jeffrey Katzenberg, decidiram estruturar "A Pequena Sereia" como um musical da Broadway, com canções e coreografias servindo de pontos de virada narrativos. A leveza do tom e a beleza da animação, além do carisma dos personagens e da qualidade da música, recuperaram o interesse do público na Disney, disparando uma série histórica de sucessos que, salvo um ou outro tropeço, perdura até hoje.
Sob o comando de Rob Marshall ("Chicago", "Caminhos da Floresta"), esses mesmos elementos não se encaixam. O termo técnico seria "deu ruim", da direção de arte que deforma a delicadeza vista no filme de 1989, aos efeitos digitais pesados e escuros. Depois de "Avatar - O Caminho da Água", a régua para aventuras submarinas ficou muito alta, e o preço cobrado, ao menos aqui, é a naturalidade.
O maior pecado, porém, foi a oportunidade perdida em dar uma chacoalhada no texto. "Malévola" e "Mulan", por exemplo, ressignificaram a jornada de suas protagonistas como mulheres independentes, de própósito claro, sem atrelar sua história a nenhuma presença masculina. "A Pequena Sereia", por sua vez, mantém as motivações de sua heroina no registro "meninas usam rosa".
Tudo bem que a curiosidade de Ariel (Halle Bailey) ainda é com o "mundo da superfície", com os humanos que ela secretamente admira. Seu pai, o rei Tritão (Javier Bardem), é enfático em reprimir essa curiosidade, o que não impede a princesa de ajudar marinheiros de um navio que vai a pique, salvando no processo o príncipe Eric (Jonah Hauer-King).
Imediatamente e inexplicavelmente apaixonada, ela se dispõe a abrir mão de sua família e de seu lar para ir atrás de Eric - oportunidade perfeita para a jovem cair nas maquinações da bruxa Ursula (Melissa McCarthy), que lhe dá pernas em troca de sua voz. Se em três dias Ariel não conseguir um beijo de amor verdadeiro de seu escolhido, o encantamento torna-se permanente, e a sereia corre o risco de ficar sem príncipe e sem lar. A essa altura, eu torço pelo feitiço.
Como em toda versão live action de desenhos Disney, existe em "A Pequena Sereia" a curiosidade em ver como os cineastas lidam com a tradução de momentos emblemáticos da história original. Aqui, toda e qualquer cena sai perdendo - e feio - de seu espelho animado. Falta cor, falta beleza. Os números musicais são absolutamente constrangedores (em especial "Wild Uncharted Waters" e "Kiss the Girl"), exceto talvez pelo alto astral de "Under the Sea".
O elenco também não ajuda. Fica difícil entender a atração de Ariel por Eric, quando Jonah Hauer-King demonstra o carisma de um pão dormido. Melissa McCarthy faz o que pode como Ursula, e eu adoraria dizer que ela ao menos surge ameaçadora no clímax, mas fica difícil quando os efeitos digitais são escuros, confusos e não conseguimos enxergar nada.
Javier Bardem parece que gravou com sono, e a vergonha alheia é inevitável em sua última cena. O design da bicharada digital também é de doer. Sebastian parece efeito especial rascunhado que esqueceram de renderizar. Já Linguado, amiguinho de Ariel, ameaça o tempo todo surgir de barriga para cima como peixinho de aquário que passou da validade.
O peso de "A Pequena Sereia", portanto, vai para os ombros de Halle Bailey. A pressão começou antes mesmo de começar as filmagens, já que a jovem atriz e cantora foi rejeitada por uma massa racista que não aceitou uma Ariel negra, e não branca e ruiva como no desenho de 1989. O filme tem, sim, um milhão de defeitos, mas ele tem um pulso quando Halle entra em cena.
Tudo bem que suas habilidades dramáticas ainda estão cruas. Visualmente, contudo, ela parece uma sereia forjada em sonhos, e quando a moça solta a voz para cantar é para aplaudir em pé. Nem a direção equivocada ou a produção cafona tiram o brilho de "Part of Your World", canção assinatura do filme. Se "A Pequena Sereia" não cumpre seu potencial, tem ao menos o mérito de apresentar ao mundo uma nova estrela de verdade.
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