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'Homem-Aranha Através do Aranhaverso' não é um filme, é uma obra de arte
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Duas horas e vinte minutos. Esse é o tempo que você terá de prender o fôlego por toda a experiência de "Homem-Aranha Através do Aranhaverso". Não existe um segundo desperdiçado, não existe um espaço que não seja preenchido por arte, por deslumbre, por beleza. Não existe nada igual. São duas horas e vinte minutos de uma história que só poderia existir como animação. Melhor respirar fundo!
A nova aventura de Miles Morales, o Homem-Aranha de um universo paralelo, extrapola em tudo o filme anterior. Os riscos são maiores, o escopo é gigantesco, a carga emocional ressoa mais fundo. Tudo isso é executado em um estilo de animação que, a certa altura, desiste de procurar os limites e voa livre em um triunfo sem igual da criatividade de um coletivo de artistas. Não existe ideia que não possa ser colocada em cena. É espantoso testemunhar todas as peças se encaixando à perfeição.
Antes de mais nada, vamos recuar um pouco no tempo. Cinco anos atrás, o fabuloso "Homem-Aranha no Aranhaverso" mudou o jogo. Disfarçada de "filme de super-heróis", a aventura trouxe uma overdose de informação visual que em nenhum momento atropelava a fluidez da trama: pelo contrário, era sua parte integral.
"Através do Aranhaverso" dobra a aposta e enfia fundo o pé no acelerador, trazendo, com mais universos, mais oportunidades para seus realizadores extrapolarem a fronteira do que hoje percebemos como animação. Enquanto muitos artistas ainda discutem formas realistas de criar água e fogo digitais, "Aranhaverso" salta alguns séculos à frente com uma colagem frenética de estilos que convivem em harmonia para contar uma história que mira pesado no coração. E não existe herói trágico mais próximo de nossa vida mundana do que Homem-Aranha.
No caso dos dois "Aranhaverso", o foco não está no Homem-Aranha que conhecemos. Afinal, a cultura pop moderna, nos quadrinhos, na TV e no cinema, mapeou de todas as formas e para todos os públicos os infortúnios na vida de Peter Parker. Sabemos que grandes poderes trazem grandes responsabilidades. Sabemos os sacrifícios que Peter é capaz de fazer pelo bem comum. Miles Morales, por sua vez, ainda é uma folha em branco.
"Homem-Aranha no Aranhaverso" colocou Miles no tabuleiro, mostrando como ele ganhou seus poderes, protagonizou sua tragédia particular e descobriu seu lugar no mundo, enxergando um propósito maior do que ele mesmo. No novo filme, ele precisa amadurecer quando suas aventuras com uma máscara não podem mais ser desassociadas de sua vida normal. Grandes poderes, grandes responsabilidades - mas o que acontece quando ele decide quebrar esse ciclo?
A resposta vem rápido quando Miles é convocado por Gwen Stacy, a Mulher-Aranha de outro universo (e talvez a única pessoa que entende seus dilemas), para ajudar no monitoramento de um sujeito chamado Mancha. Vilão de quinta com poderes aparentemente inofensivos, ele é capaz de criar pequenos buracos negros que conectam pontos aleatórios no espaço.
O Mancha, contudo, é também vítima das ações da aventura anterior e a materialização das consequências do poder desmedido depositado nas mãos erradas. Ele percebe que o abismo entre os espaços abertos por sua habilidade lhe dá acesso ao multiverso - cada novo mundo significa uma escalada em seu poder e uma ameaça ao frágil equilibrio do tecido da realidade.
Ao falhar em contê-lo, Gwen leva Miles a um ponto de encontro do multiverso, uma antessala que reúne uma espécie de sociedade de Homens-Aranhas, cada um dedicado a manter a integridade dessa tapeçaria cósmica. À frente deles está Miguel O'Hara, o Homem-Aranha de 2099, que tomou para si as rédeas de guardião de todos os universos, assegurando que a história em todos seja coesa.
Miguel acredita, depois de viver sua própria tragédia, que o destino é uma página já escrita. Arrancar essa folha para salvar uma vida pode, em teoria, custar bilhões de outras. Sua rigidez, porém, esbarra na convicção de Miles em poder traçar sua própria história. Mesmo que o caminho da tragédia pareça inevitável, o adolescente acredita ser capaz de mudar o inevitável. Livre arbítrio, algo que o calejado Homem-Aranha de 2099 não pode arriscar que entre na mistura. Miles Morales torna-se, então, alvo de uma caçada por todo o Aranhaverso.
Se uma história pode ser contada de várias maneiras, a animação ainda é capaz de desvendar territórios narrativos nunca explorados. Curiosamente, a produção mainstream se tornou muito conservadora, trazendo muitas vezes elementos de design semelhantes em uma mistura de humor, ação, petulância e emoção. Claro que funciona, e evidente que o público adora - "Super Mario Bros" e seu 1 bilhão de dólares que o digam.
"Através do Aranhaverso", por sua vez, não tem o menor pudor em sair dessa zona de conforto. Cada elemento é desenhado com funções estéticas e narrativas díferentes, como se antologias modernas como "Star Wars Visions" e "Love, Death + Robots" contassem uma única história. O resultado não só é uma festa para os olhos como também injeta personalidade em cada um dos Homens-Aranhas que tem seu momento sob os holofotes.
O mundo de Gwen Stacy, por exemplo, é representado por aquarelas e tons pastéis, uma fantasia abstrata que espelha o estado emocional dessa Mulher-Aranha. Já o Spider-Punk, egresso de uma Londres totalitarista, é animado como uma colagem de pôsteres de rock em constante movimento. Ben Reilly, o Aranha Escarlate, imita no filme o traço de seu criador nos gibis, o desenhista Tom Lyle. O universo do Homem-Aranha LEGO é, como esperado, milimetricamente perfeito.
Toda essa mistura de técnica, criatividade e emoção resulta em uma obra única, um pedaço de arte que mostra o que acontece quando mentes inovadoras ganham licença para ousar, para experimentar e para, por que não, deslumbrar. Dificilmente um filme este ano percorrerá um caminho tão criativamente vasto, sem nunca perder o foco da história.
"Homem-Aranha Através do Aranhaverso" não é "filme baseado em gibi", não é "adaptação de super-heróis". Tudo isso ficou para trás. É uma obra de arte que sinaliza uma mudança na percepção dos limites da animação, o equilíbrio perfeito entre técnica arrojada e narrativa emocionante. Miles Morales é, afinal, o herói que ninguém desconfiava que tanto precisava. Porque ele é cada um de nós. E por isso necessitamos, de coração, que ele triunfe.
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