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'The Flash' é aventura decente que não consegue escapar de Ezra Miller
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Para ser um filme sobre o homem mais rápido do mundo, "The Flash" está ao menos cinco anos atrasado. Em vez de chegar em meio à efervescência do universo compartilhado da DC no cinema, na cola de "Batman vs. Superman" e "Liga da Justiça", a aventura estreia só agora, menos como um epílogo e mais como um apagar de luzes.
O processo de tirar o filme com o Velocista Escarlate da gaveta reflete outros candidatos a blockbuster que trocam impulso criativo por decisões corporativas equivocadas. Foram dúzias de roteiristas, um punhado de diretores e uma porta giratória de personagens entrando e saindo da trama. Quando Andy Muschietti finalmente assumiu o leme, ele tinha uma bagunça monumental para arrumar.
É dele, portanto, o mérito de "The Flash" ser um filme minimamente coeso. Muschietti criou uma aventura divertida e dinâmica que não tem os problemas de tom e ritmo que, salvo raríssimas exceções, assolaram todo o universo compartilhado DC. Ao contrário da lista que vai de "O Homem de Aço" a "Shazam: Fúria dos Deuses", o novo filme é solar, é otimista. Um verdadeiro tratado anti-Zack Snyder.
Um dos grandes motivos dessa inclinação para a luz está, ironicamente, na escolha de seu protagonista. No papel (duplo) de Barry Allen, Ezra Miller traz nuances que ajudam a dimensionar a tragédia de seu personagem e solidificam nosso vínculo emocional. Entre a exploração do multiverso e o amadurecimento trazido por sua jornada, Barry é só um jovem querendo salvar a própria mãe. Ezra acerta em cheio. E é aí que está o problema.
É impossível assistir a "The Flash" e colocar de lado toda a trajetória bizarra do ator. Ezra já colecionava problemas com a lei desde 2011, quando filmou "As Vantagens de Ser Invisível". Mas ele escalou de defensor do uso de maconha a agressor, invasor de propriedade privada e aliciador de menores em velocidade supersônica.
Embora seus representantes não levantem o assunto, pessoas próximas ao ator dizem que sua instabilidade aumentou em 2019, logo após o divórcio de seus pais. Entre as pontas como o Flash em outros filmes da DC e seu trabalho na série "Animais Fantásticos", Miller colecionou acusações que foram de cárcere privado a assédio e roubo.
Ezra Miller é um ótimo ator, que abraça a própria androginia e usa essa percepção a seu favor, mesmo que isso possa surgir como revés no mundo corporativo dos blockbusters. Assistir a "The Flash", projeto no qual ele se envolveu em 2014, é como ver uma janela de possibilidades aberta para um jovem incapaz de consumá-las. É um incômodo que acompanha o filme de ponta a ponta.
Vamos supor, contudo, que todo o drama envolvendo a vida pessoal de Ezra Miller possa ser deixado de lado — bom, o estúdio fez exatamente isso. Ainda assim, "The Flash" é uma peça fora do lugar no tabuleiro armado pela DC no cinema. Mesmo funcionando como diversão ligeira, seus predicados por vezes não se sustentam. É imperfeito, ainda que não ofenda.
Não é culpa de Andy Muschietti ou de Ezra Miller, e sim um problema de toda produção que passa anos no limbo do desenvolvimento, seguindo a cada momento a orientação da gerência vigente na DC. O roteiro é desconjuntado, uma coleção de momentos que não dialogam entre si. A certa altura, a trama torna-se menos importante do que antecipar qual será o próximo personagem a aparecer de surpresa. É como acompanhar uma festa de celebridades do lado de fora do evento.
Esse "evento", por sinal, tem nome: multiverso. Assim como acontece nos gibis, uma "crise nas infinitas terras" é o momento perfeito para cortar o que não funciona e reiniciar o que ainda tem potencial em um universo compartilhado. Em "The Flash", ao contrário do que a concorrência fez em "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura", o conceito funciona direitinho. Ponto para o ligeirinho!
"The Flash" abre com a Liga da Justiça (ou parte dela) em ação quando o herói corre para Gotham City para resolver um problema ao lado do Batman (Ben Affleck, em seu melhor momento como o Homem-Morcego). Os bandidos são presos com a ajuda da Mulher-Maravilha (Gal Gadot ser reduzida a coadjuvante de luxo é um desrespeito), e Barry volta-se a seu problema principal: livrar o pai da cadeia.
Expandindo a trama dos filmes anteriores, descobrimos que Henry Allen (Ron Livinsgton) foi condenado pelo assassinato de sua esposa, Nora, morta quando Barry ainda era uma criança. Quando a última evidência do caso se mostra insuficiente para suspender a sentença, Flash extravasa sua frustração correndo além da velocidade da luz. É quando o herói descobre ser capaz de abrir uma fenda no tempo e, talvez, salvar sua mãe.
Apesar do conselho de Bruce Wayne que mexer com o tempo é arriscado, Barry cria uma "bolha cronológica" e retorna ao dia da tragédia. Ele altera eventos e previne o assassinato de sua mãe. Mas, ao tentar retornar ao presente, é "expulso" de seu trajeto por uma figura misteriosa. Flash termina num ponto em que não só sua família está unida, mas que existe outro Barry Allen, então com 18 anos, que jamais ganhou seus superpoderes. Viagem no tempo é um conceito complicado.
É nesse ponto que "The Flash" ganha uma injeção de ânimo esperadíssima. Ao descobrir que seus atos criaram um mundo sem super-humanos, e que a invasão do kryptoniano Zod (Michael Shannon) está prestes a devastar o planeta, Barry vai atrás do homem mais esperto que ele conhece, alguém que certamente pode ajudar a desfazer o nó que ele mesmo amarou: o Batman.
Sai de cena Ben Affleck, e em seu lugar retorna Michael Keaton como Bruce Wayne. Mas não o playboy milionário dos filmes que Tim Burton dirigiu. Em "The Flash", o Batman vive como um indigente dentro de sua própria mansão, isolado quando uma Gotham City pacificada encerrou sua "missão". A chegada dos dois Barry Allen e a ameaça global reacendem seu compromisso com a justiça.
A essa altura, "The Flash" se tornou uma verdadeira ode à nostalgia, embalada pela trilha de Danny Elfman. Mesmo que o Batman apareça menos do que deveria, é uma beleza ver Michael Keaton, combalido pelos anos ("Não é a idade, e sim a quilometragem", diria um certo arqueólogo) provando por que ele sempre foi o melhor intérprete do Cavaleiro das Trevas.
"The Flash" peca pelo excesso. O roteiro enfileira inúmeros elementos e separa pouco tempo para desenvolver qualquer um. A Supergirl (Sasha Calle), resgatada de uma prisão na Sibéria, é personagem protocolar que nunca explora seu potencial. O mesmo pode ser dito de Michael Shannon e Antje Traue, que pouco têm a fazer como os kryptonianos Zod e Faora. O destino de Kal-El nesse mundo, e toda a trama sobre a sobrevivência de Krypton em "O Homem de Aço", ganha aqui uma explicação sem o menor sentido.
O filme também parece desconhecer seu público. O texto faz, por exemplo, referências a versões alternativas de "De Volta para o Futuro", uma piada que só faz sentido para quem é letrado em cinema pop. A certa altura, a ponta de um mega-astro como Superman vai deixar quem desconhece os bastidores da DC no cinema — ou seja, a esmagadora maioria do público — coçando a cabeça.
São pecados que "The Flash" compensa com a mais pura honestidade. Andy Muschietti acredita em suas decisões e certamente criou a melhor versão dessa história, um ponto final definitivo em todo o universo concebido por Zack Snyder. Mesmo com "Aquaman: O Reino Perdido" estreando no fim do ano, fica difícil imaginar qualquer retorno a essa versão dos personagens com esses atores.
O que estranhamente soa original e, no atual cenário dos super-heróis no cinema, até inovador. "The Flash" pode não ser eficiente como um bloco em um universo compartilhado, mas também não precisa ser. Um filme, veja só, pode ser um filme e nada mais. Mesmo que ele seja apenas divertido em suas imperfeições e que — a maior das ironias! — chegue atrasado para a própria festa.
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