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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Hulk': Ang Lee e os 20 anos de um filme bem melhor do que sua (má) fama

"Hulk", filme de Ang Lee - Universal
'Hulk', filme de Ang Lee Imagem: Universal

Colunista do UOL

26/06/2023 04h51

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Quando Ang Lee lançou "Hulk" em 20 de junho de 2003, era tudo mato. A Marvel havia entrado no radar do cinéfilo médio pouco mais de um ano antes, quando "Homem-Aranha", aquele dirigido por Sam Raimi, quebrou recordes de bilheteria e finalmente colocou o "Amigão da Vizinhança" na tela grande. Antes disso, era "Howard, o Super-Herói", "Blade", "X-Men" e olhe lá.

"Hulk" carregava, portanto, uma responsabilidade gigantesca em seus músculos bombardeados por radiação gama. Ao lado do Aranha, o Gigante Esmeralda era o personagem mais popular da editora fora dos círculos de fãs de quadrinhos por conta da seminal série de TV dos anos 1970, que sobreviveu até uma trinca de telefilmes na década seguinte.

Em vez de Lou Ferrigno com uma peruca esquisita, porém, essa encarnação do Hulk prometia um espetáculo de efeitos especiais grandiosos, em que a criatura finalmente seria materializada em toda sua fúria. Com a tecnologia corrente, seria fácil adaptar sua origem nos gibis, engatar algum super vilão equivalente em força e, bom, esmagar geral. Ang Lee, contudo, tinha outros planos.

Até então, o diretor taiwanês trazia no currículo dramas que não se furtavam do bom humor, como "O Banquete de Casamento" e "Comer, Beber, Viver", além de "Razão e Sensibilidade", adaptado do romance de Jane Austen, e do retrato da América suburbana dos anos 1970 com o devastador "Tempestade de Gelo".

Seu retorno para casa na virada do milênio com "O Tigre e o Dragão", porém, foi um animal totalmente diferente. Ao abraçar o gênero wuxia em uma fantasia de artes marciais, Lee mostrou que seu repertório, além de trazer um profundo conhecedor da condição humana, incluía faro explosivo para ação. Quando ele foi anunciado como diretor de "Hulk", a turma se empolgou com as possibilidades.

A expectativa foi proporcional à decepção de muitos fãs. Se o público do cinema de ação esperava uma saga demolidora com um super-herói monstruoso, o que Lee trouxe para a mesa foi um estudo sobre trauma, sobre o peso do passado, sobre descoberta de identidade. Ele queria explorar a perda de controle ante um mundo equilibrado por regras, usando como avatar um personagem que trazia consigo carga dramática considerável.

Em "Hulk", o cientista Bruce Banner (Eric Bana, um achado) usa seu cérebro privilegiado para desvendar os limites da fisiologia humana. No processo, e após sem exposto acidentalmente a uma carga letal de radiação, ele desencadeia uma reação fixada em seu DNA desde o berço, resultado de experiências conduzidas por seu próprio pai. O conjunto de memórias reprimidas e fúria incontida disparam sua transformação no Hulk.

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Ang Lee dirige Eric Bana e Jennifer Connelly em 'Hulk'
Imagem: Universal

Duas décadas atrás, vamos refrescar a memória, não havia universo cinematográfico Marvel - a produtora sequer era estúdio independente, mas uma turma que planejava o salto dos quadrinhos para o cinema em um escritório pequeno localizado no andar superior de uma revendedora de carros de luxo em Los Angeles. Na concorrência, "Batman Begins" não seria lançado por dois anos. O território para super-heróis era inóspito.

Nessa paisagem, sem universos conectados ou responsabilidades com continuidade narrativa, "Hulk" surgiu como uma trama autocontida. Ang Lee, ao lado do roteirista James Schamus, usou os gibis (e a série de TV) como base para reinventar o Hulk e adequar sua jornada à trama que eles queriam contar. Havia, veja só, liberdade autoral e criativa para se divertir na caixa de brinquedos alheia. Mesmo que o impacto fosse mais cerebral e menos visceral do que os executivos da Universal, estúdio que bancou a conta, esperavam.

Tudo era questão de percepção. Engravatados antecipavam uma aventura ligeira para atingir um público dos 8 aos 80 - "Homem-Aranha", o exemplo próximo, bateu em US$ 820 milhões nas bilheterias. "Hulk", por sua vez, surgiu como um estudo de personagem travestido de aventura milionária. O público não entendeu nada e o filme de Lee estacionou em US$ 245 milhões e uma fama ruim.

A verdade é que "Hulk" estava anos-luz à frente do seu tempo. Lee não se furtou da liberdade inerente a um filme de fantasia e tratou de ancorar sua narrativa em conflitos mais realistas. Na prática, ele criou uma história de pais e filhos. O general Thadeus Ross (Sam Elliott) vê Banner unicamente como uma arma e entra em conflito com sua filha, Betty (Jennifer Connelly), que enxerga o homem por trás do monstro. O Hulk, por sua vez, precisa confrontar seu próprio pai (Nick Nolte), um sujeito que claramente já perdeu a bolinha do apito.

Para desenhar um condutor visual, Ang Lee buscou simular os quadros de um gibi como artifício dramático. A edição por vezes simula páginas de uma HQ sendo passadas, um efeito visualmente ainda não igualado. Em alguns momentos, a montagem serve como cola de painéis que, perfilados, resultam em uma narrativa gráf fluida e muito bonita.

Nesse ponto precisamos falar, claro, sobre os efeitos digitais em "Hulk". A criação do Gigante Esmeralda combinou animação pura e simples com captura de movimento, com resultados nem sempre perfeitos. Um filme, porém, não é simplesmente uma coleção de CGI (termo doce na boca dos fãs afoitos), e sim a simulação de realidade que eles atingem. Para a história tecida por Lee e Schamus, um Hulk progressivamente maior, terminando como um colosso de pura fúria, foi a solução ideal.

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'Hulk' é o mais psicodélico dos filmes de super-heróis
Imagem: Universal

O consumidor de quadrinhos mais radical reclamou dos cachorros-hulk que a certa altura atacam o herói, e da transformação de seu pai em uma versão alucinada do vilão Homem-Absorvente. Ou ainda do clímax, que só poderia ter saído dos sonhos psicodélicos de um verdadeiro artista. O curioso é que esse mesmo fã que torceu o nariz em 2003, aplaudiu os quadrinhos recentes do Hulk, que mostraram sua versão "imortal", bolada pelo roteirista Al Ewing, empatando com o filme em termos de conceitos e imagens psicodélicas.

Em retrospecto, "Hulk" representa uma espécie de filme de super-herói cada vez mais rara no cenário atual: a aventura conduzida por ideias. É justo concordar em absoluto ou discordar radicalmente da abordagem de Ang Lee. Mas a verdade é que o herói criado por Stan Lee e Jack Kirby esteve, ao menos uma vez, nas mãos de um cineasta de verdade, que fez o que todo grande artista faz: compartilhou sua visão sem amarras ou compromissos.

Anos depois, com o advento do MCU, "O Incrível Hulk" surgiu nas mãos do diretor Louis Letterier como uma versão mais convencional do herói (que eu não desgosto). A atual representação no universo compartilhado Marvel é defendida com louvor por Mark Ruffalo. Mas nenhuma dessas interpretações trouxe um momento cinematográfico tão sublime quanto o Hulk enfrentando o exército americano em uma batalha no deserto, culminando com um reencontro emocionante em São Francisco.

"Não foi difícil encontrar você", diz Betty Ross ao abraçar Banner, revertendo de sua forma monstruosa depois de demolir parte da cidade. "Foi sim", responde o cientista, ciente de que foi pela força do amor que ele emergiu da couraça incontrolável do Hulk. Um momento delicado em um filme que, duas décadas depois, merece ser redescoberto.