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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Greve em Hollywood: Por que a paralisação pode ser boa para o cinema

A atriz Fran Drescher (de preto) junta-se à Meredith Stiehm, presidente do Sindicato dos Roteristas, na linha de frente da greve  - Reprodução
A atriz Fran Drescher (de preto) junta-se à Meredith Stiehm, presidente do Sindicato dos Roteristas, na linha de frente da greve Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

14/07/2023 04h59

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Uma foto de Hugh Jackman e Ryan Reynolds no set de "Deadpool 3" deixou os fãs empolgados nas redes sociais. Foi a primeira vez nas duas décadas desde que os mutantes dos X-Men saltaram para o cinema que Wolverine surge com seu traje original dos quadrinhos, uma combinação já clássica de amarelo, azul e garras. Tudo parecia certo no mundo.

A alegria, no entanto, durou pouco. As filmagens de "Deadpool 3" foram interrompidas, sem a menor previsão de retorno, com todo seu elenco impossibilitado de voltar ao set. Em toda Hollywood, seja em locação, dando entrevistas ou no tapete vermelho, os atores cruzaram os braços. Hugh Jackman e Ryan Reynolds foram para casa.

Não será difícil, por outro lado, que os atores apareçam nos próximos dias segurando cartazes em piquetes organizados em frente aos grandes estúdios. Juntando-se aos roteiristas, que paralisaram suas atividades em 2 de maio, a associação dos atores também aprovou a decisão de entrar em greve. Hollywood, como há muito não se via, está parada. A crise é real.

Trabalho em terreno nebuloso

Essa é a primeira greve de atores desde 1980, e a primeira em conjunto com os roteiristas desde 1960, quando a associação, então liderada por Ronald Reagan, peitou os grandes estúdios e mudou a história. Os motivos há mais de seis décadas e hoje são os mesmos: melhores condições de pagamento, melhores condições de trabalho. Melhor distribuição de renda.

Fran Drescher, atual presidente da SAG-AFTRA, a guilda que organiza o trabalho de 160 mil atores nos Estados Unidos, não mediu palavras para atacar a Aliança de Produtores de Cinema e Televisão, a AMPTP, por não chegar a um acordo razoável. "Não temos escolha", disse a atriz que ganhou fama à frente da série "The Nanny". "Somos as vítimas aqui, estamos sendo vitimizados por uma entidade extremamente gananciosa".

O pedido dos atores espelha as reivindicações dos roteiristas. O streaming mudou o panorama da produção e distribuição audiovisual, e os profissionais não estão sendo compensados devidamente pelo trabalho explorado nessas novas plataformas. A falta de transparência sobre audiência no streaming deixou o cálculo sobre royalties e os chamados residuais, um percentual que todo ator ganha com reprises de seu trabalho, em terreno nebuloso.

Os dólares dos bonequinhos

Na prática, atores estão trabalhando menos, já que as temporadas de séries são mais curtas em streaming, e ganhando menos ainda. E não falo dos astros que comandam dezenas de milhões de dólares para sair da cama, mas as dezenas de coadjuvantes, figurantes e atores incidentais, que às vezes tem uma fala ou surgem em uma única cena. É a proteção dessa turma que a greve pretende garantir.

A crise havia sido absorvida previamente pelos roteiristas. Profissionais dedicados a desenrolar séries, em produção às centenas, viam seus dividendos cada vez mais pálidos, com os estúdios e serviços de streaming apertando o nó quanto ao retorno financeiro dos programas.

Enquanto as grandes empresas e seus CEOs enchem os bolsos com propriedades intelectuais e produtos derivados (como bonequinhos, camisetas e cadernos), o salário médio de um roteirista é de cerca de US$ 70 mil anuais. Isso quando um projeto decola. Isso quando ele é chamado para reescrever o texto, ganhando menos por essa segunda versão e ficando impossibilitado de aceitar novos projetos.

A revolução das máquinas

A ascensão da inteligência artificial como ferramenta, ainda sem nenhuma regularização específica, é outra ameaça para os profissionais. Um dos pontos mais indecentes da proposta da AMPTP à SAG era a permissão para digitalizar figurantes e a concessão para seu uso de imagem indefinidamente, ao custo de um dia de trabalho, além da permissão de alterar digitalmente uma performance. "Se não enfrentarmos isso agora estaremos encrencados", disse Drescher, antes de devolver a proposta com um sonoro "não". "Corremos risco real de sermos substituídos por máquinas."

Com o começo da greve dos atores, somando-se à paralisação dos roteiristas, Hollywood simplesmente fechou as portas. Segundo as regras determinadas pela SAG, é proibido a cada membro entrar no set para qualquer atividade - filmes e séries, portanto, estão paralisados até segunda ordem. Eles também estão impedidos de gravar comerciais, promover trabalhos já prontos ou andar no tapete vermelho. Eventos como a comic-con em San Diego, o festival de Toronto e mesmo o Emmy correm sério risco de acontecer sem seus rostos mais famosos. Ou não acontecer!

De médio a longo prazo, isso significa que filmes e séries que estavam em produção, como a nova temporada de "Strangers Things", "Gladiador 2" e o próprio "Deadpool 3", não tem mais data para saírem da gaveta. Se a greve se estender por muito tempo, existe o risco de os estúdios simplesmente ficarem sem material para lançar, seja no cinema, seja em streaming. Dica preciosa: é o melhor momento para consumir filmes e séries que não tenham origem nos Estados Unidos. O mundo, meu caro, é vasto e maravilhoso!

Ronald Reagan arregaça as mangas

Esse respiro, apesar de dramático e historicamente emblemático, pode ter efeitos benéficos daqui para a frente. Ao menos é o que ensina a história. No final dos anos 1950, a TV passou a exercer uma influência enorme no panorama do audiovisual americano. Embora o público tenha em boa parte trocado a experiência do cinema pelo conforto do sofá de casa, os estúdios conseguiram manter um fluxo mínimo de caixa ao licenciar seus produtos a emissoras em todo o país.

Os atores foram os mais prejudicados pela iniciativa, já que o cinema oferecia menos trabalhos ao enfrentar essa crise inédita, e os estúdios não pagavam um centavo extra a quem via sua imagem reprisada diariamente na TV. Ronald Reagan havia se mudado para Los Angeles em 1937 para trabalhar como ator, e quatro anos depois estava no conselho da SAG. Até 1952, já como presidente, ele garantiu a atores de TV que seus residuais estavam garantidos. A medida não se estendia aos astros do cinema.

Quando o volume de filmes do cinema que ganhava exibição na TV tornou-se grande demais para não causar barulho, os membros do SAG deram um basta, exigindo pagamento de royalties de todo filme exibido na telinha a partir de 1959, e pagamento retroativo de todos os filmes televisionados entre 1948 até então. Os estúdios, que então enfrentavam sua própria crise de ausência de público, vociferaram um "não" enfático e encerraram a questão.

A greve que não era blefe

Reagan, reconduzido à presidência da associação ao fim de 1959, tentou reiniciar a conversa, mas a lógica de produtores e executivos era uma só: por que pagar mais de uma vez pelo mesmo trabalho? Em fevereiro de 1960, Reagan decidiu peitar os estúdios com força e solicitou autorização para a classe entrar em greve. Os executivos acharam que era blefe. Não era.

Quando todos os atores cruzaram os braços, a produção emperrou. O que era um cenário ruim para os estúdios escalou para uma situação desastrosa. Um a um, começando pela Universal, as majors aceitaram discutir o que até então era indiscutível. Ao fim do processo, Reagan amarrou um acordo que, se não foi 100 por cento satisfatório, cravou um padrão em vigor até hoje: atores precisam ser compensados por seu trabalho se ele continua a ser explorado.

O tempo e a evolução tecnológica obrigaram a revisão do acordo de tempos em tempos. Primeiro foram as locadoras de VHS, seguidas pelas TVs a cabo, a expansão do satélite em transmissão global, a explosão do DVD, o video on demand, downloads e streaming. Cada salto exige que todos voltem à mesa. Cada vez os executivos dos grandes estúdios começam a negociação dizendo a única palavra que conhecem: "Não".

Os portões de Versalhes

A situação se torna ainda mais imoral quando estes mesmos executivos, que embolsam ao menos US$ 25 milhões por ano cada um, gritam que os termos propostos pelos trabalhadores não seriam "razoáveis". "Os sindicatos seguiram um caminho que infelizmente levará milhares de pessoas que dependem sessa indústria a enfrentar dificuldades financeiras tremendas", disse a AMPTA em comunicado. "A greve não é o que us estúdios queriam."

Assim como o acordo celebrado em 1960, as guildas de atores e de roteiristas esperam que o resultado da greve signifique uma vitória não só para essa geração, mas também para os trabalhadores futuros nessa indústria. Talvez essa pausa forçada faça com que toda a cadeia seja repensada, do preço astronômico dos grandes filmes modernos, o que facilitaria o fluxo de caixa entre os produtores, ao uso indiscriminado de ferramentas que possam prejudicar o trabalho de seres humanos. O futuro definitivamente é agora.

A entrada da SAG na greve deve acelerar as negociações. Ninguém, afinal, pode bancar por muito tempo uma Hollywood de portas cerradas. "Em algum momento o povo derruba os portões do Palácio de Versalhes", ponderou Fran Drescher ao fim da coletiva que cravou a paralisação. "Então tudo estará terminado."