Topo

Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Invasão Secreta' escancara o problema da Marvel pós-'Vingadores: Ultimato'

Colunista do UOL

04/08/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A minissérie 'Invasão Secreta' chegou ao fim carregada de informação. A trama apresentou eventos que devem reverberar pelos próximos anos, surpreendeu com a morte trágica de mais de um herói e marcou o surgimento do que pode ser o personagem mais poderoso deste universo. Ainda assim, a repercussão foi zero. De tão "secreta", a invasão despistou o radar, ninguém sabe, ninguém viu.

Essa apatia reflete um caminho perigoso traçado pela Marvel desde que a popularidade desse universo compartilhado chegou ao auge em "Vingadores: Ultimato", de 2019. Foi o ápice da construção de uma estrutura de filmes interconectados que redefiniu o cinema e a cultura pop a partir da aposta em "Homem de Ferro" (2008), uma jogada arriscada que se mostrou certeira.

Para conseguir essa hegemonia, entretanto, a Marvel sacrificou um toque autoral em suas produções. Deixar seus filmes com visual e narrativas similares fez com que o público entendesse que estava acompanhando uma saga uniforme, e não um punhado de produtos diversos. Funcionou ao longo de uma década, quando personagens consagrados (Capitão América, Hulk, Homem de Ferro) dividiram a atenção com outros menos festejados (Guardiões da Galáxia, Pantera Negra) em filmes que empolgaram de fãs a neófitos.

Ao final de "Vingadores: Ultimato", porém, as amarras que sustentavam esse universo passaram a ser percebidas como grilhões. A ideia de criar filmes interligados, como várias séries em quadrinhos que culminam em uma edição superespecial para encerrar uma saga, deixou a narrativa do estúdio engessada. Como consequência, novos personagens raramente conseguem espaço sob a sombra do próximo grande evento.

"Invasão Secreta" é o grande exemplo desse problema. Anunciada como um thriller de espionagem em torno de uma conspiração intergaláctica envolvendo a raça alienígena Skrull, a série sacrifica desenvolvimento de personagens porque precisa mostrar a costura com tudo que veio antes - em especial os eventos de "Ultimato" - e com tramas que estão por vir, em especial o longa "As Marvels", agendado para novembro.

O retorno de Samuel L. Jackson como Nick Fury, agora à frente da história, também ressaltou que o personagem funciona melhor como coadjuvante, operando nas sombras. Criar toda uma história para ele, preenchendo as décadas entre os eventos de "Capitã Marvel" e "Os Vingadores" (em uma leitura cronológica dos filmes), sepulta parte de sua aura como superespião. Seu arco dramático em "Invasão Secreta" é, para dizer o mínimo, frágil.

Em meio à bagunça, grandes atores como Ben Mendensohn, Don Cheadle, Kingsley Ben-Adir e, principalmente, Olivia Colman, passam parte de seu tempo reagindo a nada. É frustrante que a morte da agente Maria Hill (Cobie Smulder), fundamental no começo da era Marvel, tenha sido retratada com o impacto de um traque. Quando G'iah (Emilia Clarke), representando a nova geração dos aliens transmorfos, ganha poderes combinados de praticamente todos os personagens Marvel e se torna uma SuperSkrull, as consequências são ínfimas.

secretinv skrull - Marvel - Marvel
G'iah (Emilia Clarke) é agora a personagem mais poderosa da Marvel
Imagem: Marvel

O fiasco de "Invasão Secreta", que teve a menor audiência de todas as séries da Marvel lançadas na plataforma Disney+, evidencia a dificuldade que o estúdio teve em alavancar sua quarta fase, tendência que se revela ainda mais grave na quinta e atual.

A pandemia forçou a empresa a refazer seu calendário de lançamentos e diminuiu o impacto de filmes como "Viúva Negra" e "Eternos" (de longe o pior filme da Marvel). As séries, depois do entusiasmo inicial com "WandaVision" e "Loki", entraram no modo automático em "Cavaleiro da Lua" (que poderia perfeitamente ser um longa) e "Ms. Marvel".

Existe também um problema conceitual na nova fase do Universo Marvel. Se a saga inicial tinha em Thanos um vilão carismático, construído gradual e genuinamente perigoso, os novos filmes e séries patinam ao estabelecer uma direção. Supostamente o novo grande adversário é Kang, mas o confuso "Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania", lançado este ano, fracassou em "vender" o personagem interpretado por Jonathan Majors como uma ameaça de grande porte.

Antes de "Quantumania", a inconsistência narrativa na linha de montagem do estúdio tirou o peso criativo de "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura" (que teve de abrir espaço para a inclusão de personagens irrelevantes ao filme e ao grande esquema das coisas) e mutilou "Thor: Amor & Trovão", transformado pelo diretor Taika Waititi em um enorme sitcom sem nenhum senso de perigo. E quanto menos falarmos do equivocado "Pantera Negra: Wakanda Para Sempre", melhor.

secretinv kang - Marvel - Marvel
Kang, de 'Quantumania', é o grande vilão de uma nova fase que ainda não vingou na Marvel
Imagem: Marvel

Nos anos 1980, a extinta RGE publicou uma antologia de quadrinhos chamada "Almanaque Premiére Marvel". Em suas páginas, surgiu um desfile de personagens do lado B da editora como "Cavaleiro da Lua", "Mulher-Hulk", "ROM", "Hércules" e, errr, "Deus da Mata". Mesmo com a boa qualidade de algumas tramas, ler o gibi era como ver um time formado pelo banco dos reservas.

O cinema, por sua vez, é capaz de elevar um coadjuvante sem brilho ao status de astro. "Blade", primeiro filme da Marvel moderna, resolveu o caçador de vampiros de forma mais satisfatória do que décadas de gibis. O mesmo pode ser dito de "Guardiões da Galáxia", que teve com o filme de James Gunn qualidade e reconhecimento até então inexistentes. Essa mágica, porém, ainda não foi observada na nova fase da Marvel. Não aconteceu com "Shang-Chi". Nem com "Cavaleiro da Lua". Muito menos com o sofrível "Eternos".

A greve de atores e roteiristas fez com que a produção em Hollywood fosse pausada, ainda sem data para ser retomada. Antes disso, a segunda temporada de "Loki" e o longa "Capitão América: Admirável Mundo Novo" haviam concluído suas filmagens. Todo o resto, de "Deadpool 3" (com a volta de Hugh Jackman como Wolverine) a "Thunderbolts" e "Demolidor: Renascido", está com a produção interrompida até segunda ordem.

secretinv wolv - Marvel - Marvel
Ryan Reynolds e Hugh Jackman, de volta como Wolverine, em 'Deadpool 3'
Imagem: Marvel

Talvez seja o momento de a Marvel repensar seu fluxo, desacelerar seu cronograma e planejar seu futuro com mais cautela. Depois do sucesso arrebatador de sua primeira década, o estúdio chega aos 15 anos precisando de uma injeção de adrenalina. Acredito que esse novo fôlego venha com a chegada do Quarteto Fantástico e dos X-Men ao universo cinematográfico da produtora. Heróis de alcance universal que finalmente vão dividir o teto com seus colegas de farda.

Sem o Homem de Ferro ou o Capitão América, a Marvel precisa reencontrar seus grandes protagonistas, precisa redescobrir sua conexão com o público. Precisa, também, realinhar a narrativa e começar de fato sua segunda grande saga. Ainda há tempo, ao menos os quatro anos que nos separam de sua conclusão em "Vingadores: Guerras Secretas".

Precisa, por fim, reencontrar seu mojo! Até porque o super-herói mais importante de seu universo, o Homem-Aranha, é de propriedade da Sony e só está na área em tempo emprestado. Todo contrato, sem exceção, chega ao fim.