Roberto Sadovski

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Opinião

Em 'Asteroid City', Wes Anderson flerta perigosamente com a autoparódia

Nunca houve banda de rock mais consistente do que os Ramones. Em uma época de excessos e opulência, eles despiram sua música de todas as firulas e ajudaram a criar o punk rock em Nova York. Joey, Johnny e cia. criaram uma estética bem particular e um dos movimentos artísticos mais reconhecíveis do planeta, sendo apenas eles mesmos.

De certa forma, o diretor Wes Anderson é como os Ramones. Não pela economia ou pela crueza de sua arte. Ao longo de quase três décadas e uma dezena de filmes, ele lapidou um estilo visualmente irresistível e inconfundível, em que tramas espertas desenroladas por personagens peculiares invariavelmente falam direto ao coração. Não existe nada igual a um filme de Wes Anderson.

O que nos traz a "Asteroid City", em que o diretor retoma cada uma de suas idiossincrasias. O elenco pincelado entre seus colaboradores habituais, como uma companhia de teatro. Os enquadramentos perfeitamente simétricos. Os cenários deliciosamente artificiais. A influência de um cinema artesanal, excêntrico, que trafega entre Georgee Méliès e Satyajit Ray, entre Hal Ashby e Pedro Almodóvar. A história que mescla humor ligeiro e extrema melancolia.

Cada pedaço do quebra-cabeças parece estar no lugar. Ainda assim, "Asteroid City", na falta de uma palavra melhor, cansa. Ao contrário de filmes mais festejados como "Os Excêntricos Tenenbaums", "O Fantástico Sr. Raposo" e "O Grande Hotel Budapeste", o novo trabalho de Anderson parece não saber o que fazer com suas partes. O adesivo emocional que nos faz conectar com aquele mundo simplesmente não está lá.

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Em "Asteroid City", o fotógrafo de guerra Augie (Jason Schwartzman), chega com sua família — três filhas fofinhas e um filho esquisito - para uma convenção de jovens astrônomos no meio do deserto. Nesse cenário, que sugere uma visão retrofuturista dos anos 1950, também estão a atriz Midge Campbell (Scarlell Johansson), uma astrônoma renomada (Tilda Swinton), o dono do hotel local (Steve Carrell), o sogro de Augie (papel de Tom Hanks) e mais uma coleção de personagens igualmente excêntricos.

Um evento cósmico força os presentes a permanecer em quarentena, com o exército mantendo o fluxo de informações contido. A convivência forja alianças (entre estudantes superdotados), nutre romances (alguns esperados, outros nem tanto) e cria um microcosmo que supostamente reflete a ansiedade de uma época que parecia mais simples.

Para entornar o caldo, o filme estabelece já em sua primeira cena que toda a ação é, na verdade, um especial de TV com a encenação da peça "Asteroid City". Existe um narrador (Bryan Cranston), o dramaturgo em busca de novas ideias (Edward Norton) e o diretor do espetáculo (Adrien Brody). Personagens e atores se confundem, o real e o ilusório se misturam. O cinema nunca foi tão meta. Nem tão caótico.

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Jason Schwartzman e Tom Hanks em 'Asteroid City'
Jason Schwartzman e Tom Hanks em 'Asteroid City' Imagem: Universal

Os maneirismos de Wes Anderson já ameaçavam escorregar na repetição desde seu último trabalho, "A Crônica Francesa". Embora o estilo fosse o mesmo, havia no filme de 2021 um sentimento agridoce amarrado por uma trama mais concreta, lhe conferindo um centro emocional que não deixava a infinita confluência de ideias esfarelar.

"Asteroid City", por sua vez, é puro conceito e apuro técnico, sapateando no vazio. Anderson ainda move sua câmera com habilidade, passeando por cenários e personagens para contar sua história em uma escolha narrativa brilhante, mas que deixou de surpreender. Artistas precisam, afinal, de renovação - segurança e conforto arriscam deixar seu cinema enfadonho. Quando a novidade se torna um meme, talvez seja o momento de voltar a se desafiar.

É preciso dizer, entretanto, que há muito o que gostar em "Asteroid City". Esteticamente o cinema de Wes Anderson não tem paralelos, e cada enquadramento é uma pintura, como a ilustração de um livro infantil. O elenco, nutrido por sua política em equiparar a todos no set, de astros reconhecidos a atores menos festejados, resulta em um clima sem competição, em que cada um dá seu melhor incondicionalmente.

Wes Anderson continua sendo um dos autores mais interessantes do cinema contemporâneo, e mesmo pecados como "Asteroid City" lhe concedem o benefício da dúvida para qualquer projeto que ele tenha na manga. Os Ramones, afinal, foram geniais em sua coerência artística do começo ao fim. Mas qualquer fã que se preze torce o nariz para o pop bolorento de "Pet Sematary".

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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