Roberto Sadovski

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Opinião

O hype é real: 'Fale Comigo' é o melhor filme de terror do ano

"Fale Comigo" é um filme sobre possessão. Um objeto macabro, de origem desconhecida, permite que a alma dos mortos tome controle do corpo dos vivos. Essa história, mostrada centenas de vezes em incontáveis produções, ganha aqui uma reviravolta curiosa: os vivos, em vez de serem mostrados como vítimas de espíritos malignos, transformam o ritual em festa adolescente regada a álcool e transmitida ao vivo em redes sociais.

Engana-se, porém, quem imagina que a estreia dos irmãos australianos Danny e Michael Philippou traz algum tipo de subversão a cânones bem estabelecidos do gênero. Pelo contrário: "Fale Comigo" usa uma estrutura narrativa clássica, com seus diretores costurando habilmente sua trama sobrenatural a um recorte muito realista: o desconforto causado pela superexposição do jovem contemporâneo.

Afinal, se a vida privada tornou-se o entretenimento da geração do novo milênio por meio de vídeos no TikTok, não faria sentido uma molecada desavisada chafurdar com o sobrenatural às escondidas. Entrar em contato com espíritos e emprestar o próprio corpo para almas errantes só faz sentido com a recompensa de milhares de views e uma coleção farta de likes. O preço a ser pago, contudo, não vem sem sofrimento. Como em toda boa produção do gênero.

O mcguffin aqui é uma mão embalsamada que ninguém sabe precisar exatamente de onde veio. Ela pode tanto ser o membro decepado de um bruxo como simplesmente uma escultura em gesso para enganar otário. O ritual, porém, parece bem real: basta acender uma vela, apertar a tal mão, dizer "fale comigo" e logo um espírito putrefato se faz presente para quem estabeleceu o contato. "Te convido a entrar" vem em seguida, e nada de bom pode resultar nisso.

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É uma tragédia anunciada, especialmente quando um dos jovens ainda amarga um luto de dois anos. Foi quando a mãe da adolescente Mia (a espetacular Sophie Wilde) aparentemente cometeu suicídio. Seu sofrimento, ainda que ela tente esconder, faz com que a jovem de 17 anos se sinta deslocada entre a turma "descolada". Para se enturmar, ela topa a brincadeira, uma versão anabolizada da clássica "brincadeira do copo".

O ritual é mostrado em "Fale Comigo" como um paralelo claro ao consumo de drogas, em que jovens ficam chapados em bando e perdem a noção do perigo. A possessão, e o conhecimento trazido pelos espíritos, não assustam. Pelo contrário, é um jogo atraente em que a molecada mergulha sem hesitar ou temer as consequências. Mais ou menos como ter uma janela para o mundo na palma da mão com um smartphone e uma conexão wi-fi.

É ainda mais curioso que essa história, com essa temática, surja justamente por meio de uma dupla consolidada justamente ao explorar os limites da internet. Aos 30 anos, os gêmeos Philippou começaram a produzir vídeos aos 11, simulando combates de luta livre no quintal sem a menor preocupação com a própria segurança. Em 2013 eles lançaram o canal "RackaRacka" no YouTube, e a brincadeira ficou séria.

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Nada mais saudável do que juntar a turma, pegar uns bons drinks e invocar uns espíritos do mal
Nada mais saudável do que juntar a turma, pegar uns bons drinks e invocar uns espíritos do mal Imagem: Diamond Films

Ao longo da última década, o canal aglomerou 7 milhões de inscritos, que assistem a produções curtas de comédia e terror, em que Michael, Danny e sua equipe lapidaram suas habilidades em trabalhar com efeitos especiais e em coreografar cenas de ação mais elaboradas. Depois de integrar o time de produções australianas como "O Babadook", eles levantaram financiamento em produtores e órgãos de fomento para tirar "Fale Comigo" da gaveta e estrear, enfim, no cinema.

O senso de humor juvenil, contudo, parece sepultado em suas experiências no YouTube. "Fale Comigo" não usa ironia nem arrisca piadas modernosas. Pelo contrário, os diretores foram precisos ao criar um filme de terror extremamente bem cuidado, estruturado de forma tradicional, em que o desenvolvimento de personagens, obrigados a lidar com temas que vão do pesar à culpa à solidão, é elevado por sua excelência técnica.

Trabalhando amplamente com efeitos práticos e truques de maquiagem, os Philippou criaram imagens e elementos apavorantes — da mão embalsamada que se mostra objeto de cena simples e eficiente, ao visual cada vez mais grotesco das aparições, o que culmina em uma visita dilacerante ao inferno. A construção de som é soberba, assim como o cuidado com montagem e fotografia. Não é YouTube ou TikTok, é cinema de verdade.

Quando se passeia no inferno é melhor evitar as más companhias...
Quando se passeia no inferno é melhor evitar as más companhias... Imagem: Diamond Films

O cuidado com a história, porém, é o que faz de "Fale Comigo" uma experiência memorável. O filme inteiro é permeado por uma sensação de desespero, um caminho sem volta ainda mais devastador por ser trilhado por gente tão jovem e imatura. O erro fatal cometido por Mia, que ouve a voz da mãe em uma das sessões e extrapola o tempo de conexão com os mortos, não tem origem na arrogância, e sim na exploração de sentimentos que ela ainda não consegue processar.

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É o gatilho para abrir uma porta que, ao não ser fechada, expõe a jovem e todo seu entorno a um mundo carregado de tristeza e terror. A interpretação estupenda de Sophie Wilde é um achado, e ela ganha o suporte tanto de iniciantes, como o igualmente impressionante Joe Bird, como de veteranos do quilate de Miranda Otto ("O Senhor dos Anéis"). Assim como os diretores e a equipe técnica, todos enxergaram que faziam parte de algo especial e não hesitaram em dar seu melhor.

Os diretores Danny e Michael Philippou no set de 'Fale Comigo'
Os diretores Danny e Michael Philippou no set de 'Fale Comigo' Imagem: Diamond Films

O terror é o gênero que, acima de todos, justifica a experiência coletiva em uma sala escura. Muitas vezes, o que ele tem a oferecer são filmes vulgares e tramas derivativas, em que sustos rápidos e risadas nervosas compensam a falta de visão e, mais ainda, de propósito de seus realizadores. É a produção em escala industrial que troca o medo pelo choque.

Não é o caso de "Fale Comigo". Ao extrapolar traumas muito reais em uma mistura sobrenatural, Danny e Michael Philippou criaram um pesadelo que reverbera muito depois de as luzes do cinema acenderem. Um filme que se esconde nos cantos mais sombrios de nossa percepção, sugerindo que, mesmo quando voltamos à segurança de nossas vidas mundanas, nem sempre estamos sozinhos na escuridão.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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