Roberto Sadovski

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Reportagem

'Retratos Fantasmas': Kleber Mendonça fala do resgate da memória do Recife

"Retratos Fantasmas" é um filme melancólico. Ao falar sobre o auge, a queda e, por que não, o renascimento do cinema de rua do Recife, o diretor Kleber Mendonça Filho recupera não só o espírito de sua cidade natal, como entrelaça sua própria história com a das salas imponentes que contribuiram para a formação cultural e identitária de diferentes gerações.

É curioso como "Retratos Fantasmas", mesmo radiografando esse microcosmo no Recife, espelha a trajetória de tantas outras cidades e sua relação com seus espaços culturais. Esse emparelhamento é sempre uma questão financeira, com a decadência comercial da região central e a concentração de investimentos em bolsões como shopping centers.

Cinemas de rua, ainda assim, são muito mais que espaços dedicados a exibir filmes. São centros de convivência, de discussão cultural, de entretenimento, de formação de lembranças e de caráter. Em sua jornada, absolutamente pessoal e completamente universal, "Retartos Fantasmas" restabelece essa conexão com a memória que, se perdida, enterra junto a identidade de um país.

Foi nesse clima nostálgico que conversei com Kleber Mendonça sobre sua relação com o Recife e seus cinemas, a urgência em se expressar como contador de histórias e o renascimento de nossa produção cultural depois de quatro anos de trevas na "gerência" do pais. E, claro, como foi revirar o próprio baú de memórias para filmar "Retratos Fantasmas".

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Como "Retratos Fantasmas" surgiu agora, nesse momento de sua carreira?
Kleber Mendonça Filho: Não foi planejado. Eu acho que os filmes acontecem naturalmente. Você passa por um processo de achar a ideia, que leva um bom tempo, porque fica se perguntando se alguém vai se importar com isso. Depois precisa entender se tem a base para fazer aquilo. No caso, eu tinha muita coisa guardada durante muitos anos. Eu não sou exatamente um arquivista, mas eu sou um relativamente bom guardador de imagens. Quando comecei a revisitar os materiais, gostei muito do que eu vi.

Coisas de muito antes de você começar a dirigir.
Sim. Eu filmei muita coisa no início dos anos 1990, quando estava na universidade. Naquele momento eu tinha uma certeza, uma clareza de que tudo ia mudar. As salas grandes do passado estavam fechando e estava chegando o cinema de shopping, que imediatamente fulminou as salas antigas. Foi isso que eu filmei e fotografei. Juntou também a certeza que eu e minha companheira, Emilie [Lesclaux, também produtora de "Retratos Fantasmas"], a gente entendeu que nós íamos nos mudar do apartamento que eu herdei da minha mãe. Por um acaso, eu filmei esse apartamento de cabo a rabo, como está no filme. Todas as minhas experiências primitivas foram feitas lá.

Você registrou tudo, de reformas a decoração, até o gato no telhado do vizinho!
A casa do vizinho terminou registrada em segundo plano. Ela depois passa a ser uma protagonista na nossa vida, na minha vida com a Emilie, e na minha vida com a minha mãe também. Depois uma vilã e depois um problema real, um problema físico. Isso também entrou no filme. Então, tudo isso juntando, eu achei que tinha um filme interessante para ser feito. Mas antes disso, ainda é uma investigação de montagem, porque você nunca sabe se isso vai dar em alguma coisa.

Do material que não era seu, do material dos cinemas de rua, do material histórico, teve alguma coisa que você foi procurar e descobriu que não existe mais, que ninguém tem nada guardado?
Oficialmente não há nada guardado sobre nada.

Não surpreende....
Por exemplo, o Cine Veneza foi achado com uma anotação vaga na Cinemateca Brasileira. Mas não tem, por exemplo, nada do Hall, da prateleira com todas as inaugurações de cinema do Brasil afora. Deveria ter, porque esse é quase um subgênero do cinema de divulgação. Não é documental, mas as empresas queriam registrar a inauguração de seus investimentos e mandar uma equipe de 35 milímetros filmar. O Veneza, para mim, é quase como aquela montanha de "Contatos Imediatos do terceiro Grau", que o cara começa a obcecar com aquilo, depois ele descobre que todo mundo está obcecando com a mesma coisa. Eu sempre soube que o Veneza era uma puta sala, mas achava que eu era o único que falava dele. Quando eu postei no Instagram, uns anos atrás, uma imagem que eu fiz já na filmagem do "Retratos Fantasmas", teve 940 comentários. Aí eu disse, caralho, as pessoas sentem a mesma coisa que eu sinto em relação a aquele lugar. O filme foi sendo moldado pelas descobertas.

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Sua casa no Recife é retratada como uma constante em sua vida, inclusive por você ter usado o espaço como cenário, não só dos seus curtas, mas ele está lá em "O Som ao Redor" e também tem o espírito de "Aquarius", essa relação com o lugar onde você cresceu."Retratos Fantasmas" seria uma espécie de ruptura com esse passado para enxergar um cinema diferente daqui para frente?
Eu achei, ou as pessoas acharam, que isso teria acontecido com "Bacurau", porque "O Som ao Redor" e "Aquarius" eram de um certo jeito, e "Bacurau" é meio western. Então eu acho que não, porque "Retratos Fantasmas" é um filme de arquivo. Mas eu gosto de achar que ele é um álbum de família que eu decidi montar da própria cidade. Só que esse álbum é meu, não é um álbum que eu vou disponibilizar na praça e dizer que é de todos. Esse é um álbum de família da cidade, vocês talvez vão gostar, mas ele é meu, ele é minha família, e eu estou bem com isso.

Existe carinho com as imagens, até quando elas mostram o destino inevitável de algumas salas.
Pois é, disseram que eu peguei leve com igrejas evangélicas, mas eu não peguei leve, o filme não é sobre isso. Eu vi aquelas salas até o fim, eu fui nelas, não tinha a menor condição de elas continuarem abertas, ninguém ia mais nelas, fecharam, a igreja que decidiu comprar. Eu mostro como a coisa foi feita.

Kleber Mendonça Filho papeou com este que vos escreve sobre 'Retratos Fantasmas'
Kleber Mendonça Filho papeou com este que vos escreve sobre 'Retratos Fantasmas' Imagem: Reprodução

Você fala dessa relação com cinema de rua, que termina conversando com quem tem uma história com cinema. Hoje existe toda uma geração que só conhece o multiplex no shopping. Existe uma relação com esse cinema de rua que vai além dessa pessoa que é apaixonada pelo espaço?
Existe, porque o Recife e várias outras cidades do mundo são provas de vida real disso. O Recife, por uma série de questões muito interessantes, quase como uma sopa de ingredientes -- a questão cultural, a visão de uma certa luta, a própria família que salvou São Luís --, salvou o cinema São Luís. O São Luís existe, voltou como sala pública e foi feito um trabalho de construção de público, um trabalho de programação especial para uma sala daquela. "Bacurau" foi visto por 33 mil espectadores no São Luís.

É um absurdo!
Isso é incrível. Ele foi mal nos multiplexes? Não, ele foi muito bem nos multiplexes, mas ele foi muito bem no São Luís. Isso, para mim, é o ideal. É o resultado de olhar para um espaço desse como construção, educação e cultura, e é feito um trabalho de inteligência de programação, que significa programar "Bacurau", programar mostras, festivais, Hitchcock e, por que não, "Barbie" em algumas sessões durante a semana. Mas, por favor, nunca a semana inteira em todos os horários. É impossível. Seria um crime contra a cultura no Recife!

O cinema como espaço plural.
Exatamente! "Barbie" pode passar também no São Luís se programar de maneira inteligente. Uma sala dessa cria o seu próprio microclima. No Recife é um lugar que muita gente jovem frequenta como se fosse a coisa mais normal do mundo. Eu acho isso do caralho. Porque aquela pessoa sabe que pode ver no São Luís e pode ver lá na Cinemark. Existe escolha. Isso é uma realidade no Recife. E algumas cidades têm essa realidade. São Paulo, infelizmente, eu sou muito crítico. Critico como São Paulo decidiu não guardar nenhuma dessas salas. E São Paulo teve muitas.

Quando eu cheguei em São Paulo ainda tinha muitas salas de rua, principalmente no centro. Eu ainda peguei algumas salas em 1996. Meu cinema favorito hoje é o Cine Marquise.
Muito bom. Aqui no Conjunto Nacional.

Pedi a minha namorada em casamento lá há duas semanas.
(risos) Ah, foi?

Saímos de uma sessão de "Psicose" e fiz o pedido. Porque o cinema é o lugar das minhas lembranças.
Aquela sala teve três grandes pré-estréias pra mim em São Paulo. "O Som ao Redor", "Aquarius" e "Bacurau".

Assim como "Bacurau", "Retratos Fantasmas" tem criado um burburinho muito orgânico em redes sociais, as pessoas podem se preparar para ir ao cinema. Ao mesmo tempo, tem semanas com quatro, seis filmes nacionais estreando que desaparecem e ninguém sabe nem que existiram. Como que você vê essa relação muito esquisita hoje entre o produtor, o distribuidor e o exibidor para poder preservar a nossa memória nos cinemas e garantir que o público possa ver filmes minimamente competitivos com os "Barbie" da vida? Onde está esse equilíbrio?
Em primeiro lugar, precisamos trazer de volta a cota de tela que foi sabotada pelo governo Temer e desarmada pelo governo Bolsonaro. É uma prova completa de desrespeito pelo produto brasileiro. É a defesa do nosso espaço, como os sul-coreanos fazem, como os franceses fazem. Se eles fazem, está tudo certo pra mim. A gente também precisa pensar muito no que estamos filmando. Toda vez que eu parto para um projeto é sempre um drama, tipo "Vale a pena fazer esse filme? O que que eu tenho pra falar? Será um bom filme?" Eu nunca sei se será um bom filme. É um mercado muito competitivo. Muitos filmes são feitos. Eu acho isso uma coisa boa, mas que fatalmente pode ser também melancólico. A França também passa por isso. Eu morei na França, trabalhei dentro de um cinema e o diretor do espaço chegava pra mim e falava, "É muito filme francês, eu não aguento mais filme francês".

Muita gente reclama da qualidade de filmes brasileiros, mas o cinema argentino tem muita bomba que nunca chega aqui.
É por aí. É melhor que a gente produza e que exista uma peneira. Essa peneira às vezes é extremamente cruel. Mas essa peneira não é justa se não tem uma cota de tela. "O Som ao Redor" se beneficiou de cota e foi uma coisa muito boa para o cinema e para o filme. A gente precisa restabelecer esse respeito pela ideia de fazer cultura no Brasil, que está sendo refeita agora com um novo governo. Estamos vindo de uma pandemia. da quebra da cota de tela e de um governo sacana que sabotou todos os artistas no Brasil. É um momento muito particular. Eu espero que o "Retratos Fantasmas" ajude a essa reconstrução.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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