'Exorcista: O Devoto' é uma das piores coisas que já aconteceram ao demônio
Tadinho do tinhoso. Mesmo com um fã-clube que não para de crescer, anda cada vez mais difícil acertarem uma representação bacana de seu nome na cultura pop. No cinema, então, não temos um filme decente sobre sua presença nefasta desde "Vozes da Escuridão", de 2016. Mostrar a face do mal, ao menos na ficção, não está fácil.
"Exorcista: O Devoto" chega para provar que sempre há um alçapão no fundo do poço. O que é uma heresia, já que o filme de David Gordon Green pretendia ser uma continuação do clássico absoluto "O Exorcista", fenômeno que colocou o gênero no mapa e segue, cinco décadas depois, como uma das experiências mais assustadoras da história.
Não espere, entretanto, sustos em "O Devoto". Ou mesmo algo que se aproxime de uma nova ideia. Se em seu primeiro ato o filme sugere recuperar o clima de desespero em família de seu ancestral, o que se segue é uma catástrofe atroz, uma salada que recicla toda a estrutura do original com total incompetência para compreender porque ele funcionou em primeiro lugar.
O holofote de "O Devoto" está em Victor Fielding (Leslie Odon Jr.), fotógrafo que cria sozinho sua filha, Angela (Lidya Jewett), desde que sua esposa morreu, 13 anos antes, ao dar à luz nos escombros de um terremoto no Haiti. Curiosa, a adolescente parte com a amiga Katherine (Olivia O'Neill) em uma aventura na floresta para se "comunicar com espíritos".
As jovens desaparecem e são encontradas três dias depois, mas logo fica claro que elas não voltaram sozinhas. Uma presença maligna parece corroer a mente de Katherine, para o desespero de seus pais ultra religiosos (Jennifer Nettles e Norbert Leo Butz), e também se apossa de Angela ante o ceticismo de Victor, hoje um homem sem fé. Ninguém consegue descobrir, porém, se o comportamento é resultado de algum trauma ou de influência demoníaca.
Até aí, "Exorcista: O Devoto" constrói uma estrutura narrativa que não compromete, mesmo não dando tempo para que a plateia se importe com as adolescentes, com outros personagens e muito menos com o embate sutil entre religião e ateísmo. Mas basta a vizinha-enfermeira-ex-noviça interpretada por Ann Dowd cravar que é um caso sobrenatural para o filme perder de vez as rédeas.
É nesse momento que ele comete seu pior pecado. Não havia a menor necessidade em conectar "O Devoto" com "O Exorcista" de 1973, e a presença pálida de Ellen Burstyn, reprisando o papel de Chris MacNeil, é mais ferramenta de marketing do que necessidade criativa.
A personagem, mãe da possuída do filme original, não contribui em nada para a trama, e dela é retirada antes mesmo de registrar sua presença apropriadamente. É uma vergonha.
David Gordon Green foi o responsável por recuperar a série "Halloween" para a geração millennial, com três filmes que custaram juntos US$ 50 milhões e renderam dez vezes mais. Os números talvez justifiquem o investimento de US$ 400 milhões que o estúdio fez para assegurar os direitos de "O Exorcista" e planejar uma trilogia. Mas isso é problema dos contadores.
Existe, vale ressaltar, uma diferença brutal entre as duas séries. Ao contrário de "O Exorcista", "Halloween" possui um conflito humano muito claro para ancorar a fantasia, representado por Laurie Strode (Jamie Lee Curtis), a final girl original, e o assassino mascarado Michael Meyers.
Construir uma continuação ambientada décadas depois do primeiro filme, como foi o caso do "Halloween" de 2018, trouxe uma conexão emocional amplificada pelo tempo.
A trama de "Exorcista: O Devoto", por sua vez, não traz nada que o ligue ao filme de 1973 — ou a qualquer uma de suas continuações. O direção genérica fracassa em despertar qualquer empatia pelas adolescentes (não passamos nenhum tempo com elas, ao contrário do que acontece com Regan MacNeil em "O Exorcista"), e a história segue morna, empilhando personagens até culminar no próprio ritual, que é confuso e de pouco impacto.
Newsletter
O QUE FAZER EM SP
Qual a boa do fim de semana? Receba dicas de atrações, passeios, shows, filmes e eventos para você se planejar. Toda sexta.
Quero receberExiste uma tentativa em "O Devoto" de ir além dos dogmas católicos que são historicamente associados a práticas de exorcismo no mundo da fantasia. Na prática, o filme traz uma espécie de "vingadores do divino" que unem suas crenças para expulsar o demônio das duas meninas.
Ao contrário dos padres Karras e Merrin, porém, ninguém do esquadrão (que une um padre católico, um pastor batista, um protestante e uma praticante de vudu) traz consigo qualquer bagagem que os dê alguma dimensão. É constrangedor.
É difícil imaginar um caminho para que essa nova encarnação da série se torne uma trilogia, especialmente depois de um ponto de partida tão insípido. O terror, contudo, é uma engenhoca estranha, sendo possível que, unicamente pela força da marca, "Exorcista: O Devoto" encontre seu público como produto, especialmente nas semanas que antecedem o Dia das Bruxas e com o simbolismo da estreia em uma Sexta-Feira 13.
Como cinema, porém, David Gordon Green só conseguiu criar um filme sem nenhuma lógica interna, sem nada de novo a dizer e sem nenhum susto memorável. Um trabalho preguiçoso que tem como destino a mesma vala em que repousam "Exorcista 2: O Herege" e "Exorcista: O Início".
Nem a ponta desnecessária de um rosto conhecido nos segundos finais traz algum pulso. Talvez o plano do demônio seja mesmo se manter desacreditado na cultura pop para que ele possa trabalhar em paz. O tinhoso, dizem, é esperto.
Deixe seu comentário