'O Demolidor' e os estranhos filmes de Sylvester Stallone nos anos 1990
"O Demolidor" nasceu bem à frente de seu tempo. A aventura de ficção científica que fez Sylvester Stallone acordar no futuro antecipou inovações que, há três décadas, pertenciam ao mundo do faz de conta. O filme de Marco Brambilla é uma sátira social e tecnológica que soa ainda mais atual e continua sendo um dos melhores exemplares do cinema de ação dos anos 1990.
Stallone é John Spartan, policial que, em 1996, é condenado a uma prisão criogênica após uma ação desastrosa para prender o übervilão Simon Phoenix (Wesley Snipes). O filme salta para 2032, quando Los Angeles, São Francisco e San Diego foram fundidas numa megalópole em que o crime é coisa do passado. Simon, violentíssimo, escapa de sua prisão e a cidade, incapaz de lidar com aquele tipo de ameaça, não tem escolha a não ser descongelar Spartan.
Escrito por Daniel Waters ("Atração Mortal", "Batman - O Retorno"), que trabalhou em cima do texto de Peter Lenkov, não tinha pretensões em fazer um comentário sobre correção política em seu roteiro. O que ele trouxe, em especial com a chegada de Stallone, foi o senso de humor que pudesse ressaltar as diferenças da sociedade contemporânea para uma utopia futurista. O grande barato de "O Demolidor" foi justamente se divertir com as possibilidades.
Assistir a "O Demolidor" hoje é uma experiência curiosa. Não somente pelos paralelos com a cultura contemporânea, mas principalmente por observar a virulência dos extremos. A sociedade do futuro baniu, junto com a violência, o consumo de carne, a livre expressão e a proximidade das relações humanas — a cena "romântica" com a personagem de Sandra Bullock é de rachar o bico! É preciso um brucutu do passado para readquirir o equilíbrio.
1993 foi um bom ano para Sylvester Stallone. "O Demolidor" chegou aos cinemas meses depois de outro triunfo, a fita de ação "Risco Total". Ao contrário de boa parte dos exemplares atuais do gênero, eles não nasceram de uma propriedade intelectual, mas deram origem - especialmente o filme de Brambilla - a produtos derivados, como videogames e histórias em quadrinhos. Havia espaço para John Spartan continuar suas aventuras, mas o cinema na época não operava exatamente assim.
Pesa também o fato de os dois filmes surgirem como exceção no catálogo de Stallone nos anos 1990. Depois de explodir com "Rocky, Um Lutador" em 1977, o astro praticamente dominou a década seguinte com exemplares em série não só do boxeador, mas também do soldado Rambo. Na batalha dos astros bombados, no entanto, ele parecia aos poucos perder espaço para Arnold Schwarzenegger, que era mais esperto em escolher seus papéis.
Assim, Stallone arriscou uma nova série com "Cobra", que não deu em nada, e recebeu um salário milionário com "Falcão - O Campeão dos Campeões", outro tiro n'água. O fim dos anos 1980 trouxe uma tentativa de encabeçar um drama de ação ("Condenação Brutal") e de entrar na ciranda das duplas policiais com "Tango & Cash", ao lado de Kurt Russell.
Quando Schwarza acenou que o posto de maior astro de cinema do mundo seria dele, Stallone tomou uma série de decisões artísticas péssimas, a começar pelo equivocado "Rocky V" em 1990. Nos anos seguintes, ele acreditou que de fato era um sujeito engraçado e cometeu dois pecados, "Minha Filha Quer Casar" e "Pare! Senão Mamãe Atira". O respiro de 1993 não melhorou o material que viria em seguida.
A começar por "O Especialista", um sex thriller com Sharon Stone trazendo provavelmente o casal com a pior química da história do cinema. "O Juiz" veio em seguida, a adaptação do personagem das HQs britânicas Judge Dredd, que viu toda a sátira militaresca sobre o papel das autoridades esvaziada em um filme que deu espaço demais para Rob Schneider.
A essa altura, Stallone havia ligado o piloto automático. Depois do bom "Daylight", um sucesso moderado, o astro deu uma reviravolta com "CopLand", de 1997. O ótimo filme der James Mangold é um drama policial complexo, em que Sly ganhava o apoio de um elenco que trazia Robert De Niro, Harvey Keitel e Ray Liotta. Mas foi um breve momento, a última tentativa de um astro cansado em recuperar sua relevância.
Nos anos seguintes, já entrando no novo século, Stallone arranhou o fundo do poço com uma série de filmes indignos de sua presença, como "O Implacável", "Alta Velocidade", "D-Tox" e "Missão Perigosa". O terceiro "Spy Kids" o colocou na posição de ator acabado que morde um papel com um diretor descolado. Sem se dar por vencido, contudo, o astro emplacou "Rocky Balboa" em 2006 e o resto é história.
Recuperar seu personagem mais emblemático o impulsionou a tentar o mesmo com Rambo (em dois filmes pavorosos) e a criar uma nova série, "Os Mercenários", na qual, ao menos nos dois primeiros filmes, ele ainda enxergava com bom humor o absurdo do cinema de ação anabolizado. Até aí, tudo bem. Stallone finalmente pareceu fazer as pazes com o sucesso e com seus status na indústria.
Newsletter
O QUE FAZER EM SP
Qual a boa do fim de semana? Receba dicas de atrações, passeios, shows, filmes e eventos para você se planejar. Toda sexta.
Quero receberUma indústria que, por sinal, fracassou em reconhecer seu trabalho quando lhe negaram um Oscar de melhor ator coadjuvante por "Creed". O brilhante Mark Rylance levou a estatueta em 2016 por "Ponte dos Espiões", mas ainda assim a Academia perdeu a chance de criar um momento histórico.
Rever "O Demolidor" é, portanto, uma ótima oportunidade para reencontrar um ator que não tinha receio em arriscar e que estava disposto a ampliar seu leque de personagens emblemáticos. 30 anos depois, o filme continua uma ótima sessão de cinema, mesmo que jamais tenha respondido a uma pergunta que nos assola desde então: como é que a gente usa as três conchas?
Deixe seu comentário