Roberto Sadovski

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Opinião

'O Assassino': David Fincher dirige uma máquina de matar elegante e precisa

Em "O Assassino", David Fincher retrata a eficiência e a banalidade da rotina de um assassino de aluguel. Ele é uma máquina de frieza e precisão - e não falo só do matador sem nome interpretado por Michael Fassbender, mas também do diretor, que faz qualquer projeto em suas mãos se tornar a combinação de um cinema de engrenagem perfeita com a imprevisibilidade da emoção desconcertante.

É providencial, portanto, que "O Assassino" promova esse choque. Baseado na série de graphic novels assinada por Alexis Nolent, o filme acompanha um profissional eficiente que se torna alvo ao cometer um erro na execução de um trabalho. Um engano é o que basta para sua vida de extrema precisão sair do eixo, e ele precisa então recuperar esse equilíbrio, nem que para isso precise empilhar corpos.

O gatilho é quando, num plano de contingência aparentemente rotineiro, seu empregador opta por eliminar o assassino, em um ataque que termina por ferir a mulher com quem ele divide o lado "normal" de sua vida (papel de Sophie Charlotte). O paradoxo surge quando ele retroage esse ataque para estancar o sangramento em sua vida profissional, uma faxina internacional no que se torna seu trabalho mais pessoal - e que, ainda assim, ele insiste em manter-se emocionalmente desconectado.

Assim como o fez em "Quarto do Pânico", suspense hitchcockiano com Jodie Foster e Jared Leto, "O Assassino" traz Fincher experimentando seu cinema em um gênero estabelecido, no caso o thriller neo-noir. Não existe, portanto, a armadilha sedutora em desconstruir um estilo. Pelo contrário: o cineasta se atém às suas regras e faz um trabalho de imersão, reinterpretando as convenções sob sua ótica e criando um produto único e estonteante em sua beleza.

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Essa personalidade vem do ritmo imposto por Fincher, uma cadência glacial que nos transforma em cúmplices do assassino, já que toda a história ocorre em seu ponto de vista. Estamos a seu lado quando ele usa seu arsenal intelectual para ligar pontos e caçar seus inimigos, como se estivesse perseguindo uma sombra de si mesmo. A banalidade de toda a operação nos coloca em uma zona de conforto, multiplicando o impacto da explosão de violência.

Engana-se, contudo, quem imagina que "O Assassino" tenha alguma semelhança com, por exemplo, "John Wick". O mundo aqui é menos artificial ou fetichizado, e quando o matador precisa usar de suas inegáveis habilidades de combate, o resultado não é um balé coreografado (ainda que plasticamente impecável), e sim um confronto de brutalidade desconcertante.

A escolha de Michael Fassbender como o assassino mostra a habilidade de Fincher em escancarar o óbvio. Assim como Michael Douglas, Brad Pitt ou Ben Affleck, avatares perfeitos para os personagens do diretor, Fassbender traz não só a frieza no olhar mas também uma aura de mistério. Um olhar para ele e não sabemos sua procedência ou do que seria capaz de fazer.

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Michael Fassbender observa Sophie Charlotte antes de cair no mundo
Michael Fassbender observa Sophie Charlotte antes de cair no mundo Imagem: Netflix

Revelado por Zack Snyder em "300", o ator irlandês foi notado posteriormente em "Bastardos Inglórios", de Tarantino, equilibrando depois papéis em dramas de prestígio ("Shame", "12 Anos de Escravidão", "Steve Jobs") e em blockbusters (ele fez "Prometheus" e "Alien: Covenant" para Ridley Scott e foi o mutante Magneto em quatro filmes da série "X-Men"). Então ele pisou no freio.

Quando "Fênix Negra" estreou e espatifou-se em 2019, Fassbender já alimentava sua outra paixão, o automobilismo. Começou a pilotar profissionalmente em 2017, chegando a competir duas vezes nas 24 horas de Le Mans. Avesso ao escrutínio público, mudou-se no mesmo ano de Londres para Lisboa, onde vive com a atriz Alicia Vikander, com quem está junto desde 2014. A vida de astro definitivamente não lhe cabe.

"O Assassino" foi sedutor o bastante para ele sair de seu autoexílio, uma simbiose muito feliz com David Fincher, traduzida no casamento perfeito de diretor e intérprete. Fassbender é a peça final para o cineasta desenhar mais um filme que sugere distanciamento mas exibe um coração pulsante. Quando Ficnher decide retomar seu lugar atrás das câmeras, é sempre um acontecimento - mesmo produzido para o streaming, ele poderá ser saboreado no cinema. Do lado de cá, é impossível permanecer impassível.

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