Sabe a série que Keanu Reeves rodou no Brasil? Então, subiu no telhado...
Em 2019, Keanu Reeves veio a São Paulo como produtor e protagonista da série de ficção científica "Conquest". O astro conversou com políticos, encontrou celebridades e desfilou a simpatia habitual. As filmagens finalmente aconteceram na Avenida Paulista, com um elenco que pincelou novos rostos em todos os continentes, inclusive a brasileira Bruna Marquezine. O lançamento seria da Netflix.
O verbo "seria" está no futuro do pretérito porque "Conquest" não está mais na programação da plataforma de streaming. Na verdade, a série dificilmente verá a luz do dia. Não existe um episódio completo, mesmo depois de um investimento de US$ 55 milhões e do nome de Keanu nos créditos. Encontra-se em coma, enroscada em um imbróglio que envolve milhões de dólares desviados em carrões, roupas e cryptomoedas. No centro de tudo encontra-se um nome: Carl Rinsch.
Para entender o ocaso de "Conquest", precisamos voltar no tempo. Em 2010, Rinsch dirigiu "The Gift", curta premiado no Festival de Publicidade de Cannes, sob a tutela de Ridley Scott. Seu trabalho fez crescer os olhos de Hollywood, e logo o jovem cineasta teve seu nome associado a um novo filme da série "Alien" (que terminou nas mãos do próprio Scott), além das refilmagens de "O Monstro da Lagoa Negra" e "Fuga do Século 23".
Sua estreia em longa-metragens, por fim, foi em "47 Ronins", épico de artes marciais protagonizado por Keanu Reeves. Em linguagem técnica, contudo, "deu ruim". A produção de US$ 175 milhões chegou aos cinemas em 2013 e naufragou de forma espetacular nas bilheterias, não empatando sequer seu custo de produção. Eu assisti ao filme sozinho em uma sessão para imprensa em São Paulo, e até hoje não conheci ninguém que também tenha visto.
Os problemas de "47 Ronins", porém, não começaram com a recepção gélida de público e crítica. Nos bastidores, Rinsch entrou em choque com produtores durante as filmagens e adquiriu fama de "difícil". Posteriormente, foi removido do processo de montagem e perdeu o controle sobre seu trabalho. Ele aprendeu que, em Hollywood, o garoto-prodígio se torna um garoto-problema num piscar de olhos.
De volta ao mundo dos comerciais, Rinsch teve tempo para desenvolver uma série de ficção científica em que pessoas artificiais eram enviadas em missões humanitários ao redor do globo. Quando eles revelam sua verdadeira natureza, é deflagrado um conflito entre a raça humana e a chamada "inteligência orgânica". O diretor colocou dinheiro do bolso no projeto, juntou uma equipe na Europa e começou a filmar em locações no Quênia e na Romênia.
Foi aí que a coisa começou a complicar. Longas horas de gravação - às vezes 24 horas seguidas - refletiram na saúde e no estusiasmo da equipe. Para impedir a debandada, Rinsch garantiu financiamento com um investidor independente, mas viu o risco de perder os direitos do projeto quando passou a descumprir prazos. Foi quando Keanu Reeves, seu amigo desde "47 Ronins", entrou em cena como produtor. Com a injeção de grana, seis episódios de 4 a 10 minutos cada foram finalizados. Hollywood estava de olho.
Apesar do fracasso colossal de "47 Ronins" no currículo, a ideia de Carl Rinsch, então batizada "White Horse", tornou-se objeto do desejo entre as plataformas de streaming. Há uma década, com a disparada da produção nas plataformas, todos queriam "conteúdo" para agreghar valor à sua marca. O projeto do diretor, que além dos curtas abraçava uma proposta de treze episódios para uma primeira temporada, foi visto como o pacote ideal para ser expandido como propriedade intelectual.
Todos fizeram uma oferta - Amazon, HBO, YouTube, Netflix, Hulo e Apple - e a empresa de Jeff Bezos, com seus bolsos profundos, saiu na frente. Antes de assinar o contrato, porém, Rinsch recebeu uma proposta sem precedentes da Netflix: US$ 60 milhões de dólares pelos direitos da série, controle criativo total para o ditetor, com direito ao corte final, e a garantia que ele e sua esposa e co-produtora, a modelo uruguaia Gabriela Rosés Bentancor, estariam atrelados para toda a eternidade a qualquer produto derivado do projeto, já rebatizado "Conquest".
Seria um acordo monumental e esperto por parte da Netflix, vide o sucesso de séries de fantasia e ficção científica como "Stranger Things". Alguns alertas, porém, passaram despercebidos, como apontou uma extensa reportagem no New York Times. Primeiro, absolutamente ninguém se atentou para o fato de o projeto ainda ter pendências financeiras com seus antigos investidores. Pior ainda, não havia um roteiro completo para a série.
O investimento da Netflx, contudo, agora exigia resultados. Com Keanu Reeves também na frente das câmeras, "Conquest" acelerou a produção, com locações primeiro em São Paulo, depois em Montevidéo e em Budapeste. "Um dos motivos de filmar em São Paulo foi certamente sua diversidade étnica e cultural muito forte, e nossa trama tem a ver com isso. A situação dos imigrantes, dos refugiados", disse Rinsch à época. Por trás das câmeras, seu comportamento errático ameaçava sair do controle, com explosões de fúria com sua equipe.
A essa altura, a Netflix já investira US$ 44 milhões em "Conquest", sem ter sequer um trailer para alardear a série. Sem uma data de lançamento e sem enxergar o fim da produção, o gigante de streaming cobrou resultados de Rinsch, que então se mostrava indeciso com duas versões do roteiro que havia desenhado. Para impedir que o projeto fosse cancelado, a empresa transferiu US$ 11 milhões adicionais para o diretor.
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Quero receberO que aconteceu em seguida deve entrar para a história das produções bizarras em Hollywood. Carl Rinsch alocou o montante que recebeu em sua conta bancária pessoal e achou por bem investir no mercado de ações, em especial empresas de biotecnologia que iniciavam testes de vacinas em pacientes com Covid. Em semanas, US$ 6 milhões foram perdidos.
A essa altura o futuro de "Conquest" havia se transformado no festival de descontrole de um cineasta. Gabriela Rosés, que pediu o divórcio em 2021, disse que suas visitas ao agora ex-marido eram regadas de teorias conspiratórias sobre forças extraterrestres inteligentes visitando a Terra e de como ele era capaz de prever tempestades elétricas e erupções vulcânicas.
Enquanto isso, a Netflix experimentava mudanças em seu quadro de executivos, com o sangue novo querendo saber o que havia acontecido com o projeto de US$ 55 milhões de dólares que eles haviam bancado. A exigência em ver qualquer material filmado para a série foi recebida com longos e-mails de Rinsch sobre "o sinal emitido pelo coronavírus direto do centro da Terra". Sua sanidade foi questionada, mas uma avaliação legal em Los Angeles constatou que, vai saber, ele ainda tinha as bolinhas do apito.
Foi nesse ponto que a empresa concluiu que seria impossível ir adiante com "Conquest", e que Rinsch estaria contratualmente em liberdade para levar o projeto a outro estúdio - contanto que um eventual novo proprietário cobrisse todo o investimento até então. O diretor, por sua vez, usou parte do orçamento que ainda tinha no banco para apostar em cryptomoedas.
Como a Terra plana realmente capota, esse segundo investimento deu frutos, rendendo a Rinsch cerca de US$ 27 milhões. Dinheiro em mãos, ele deu de ombros para "Conquest" e torrou parte da fortuna em cinco Rolls Royce, uma Ferrari, um relógio avaliado em US$ 400 mil e recheou sua casa e armário com os melhores móveis e roupas que o dinheiro pode comprar. Uma análise forense no processo avaliado pelo New York Times cravou um gasto de US$ 9 milhões nessa brincadeira.
A história de Carl Rinsch e o esfacelamento de "Conquest" serve como alerta para grandes estúdios, vorazmente em busca de sua próxima estrela, que um pouco de cautela nunca é demais. Com um currículo abrilhantado por um filme fracassado solitário, Rinsch convenceu a maior plataforma de streaming do mundo a bancar um sonho que ele claramente não possuia habilidade em concretizar.
O caso não terminou e ainda segue nos tribunais, com a Netflix buscando uma forma legal de reaver seu investimento, ou ao menos o material existente de "Conquest". Carl Rinsch, por sua vez, contesta o mérito da ação, diz que o dinheiro é seu como parte do acordo original e ainda exige da Netflix o pagamento do restante de seu contrato, totalizando mais de US$ 14 milhões. Hollywood definitivamente não é para amadores.
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