Ousado e oportuno, 'Pedágio' usa humor para ressaltar a farsa da hipocrisia
"Pedágio", excelente novo trabalho de Carolina Markowicz, quer ser muitas coisas. É uma história de amadurecimento e da descoberta da própria identidade. É uma reflexão sobre a hipocrisia escancarada todos os dias pelo "cidadão do bem". É uma radiografia de um país que teima em camuflar sua ignorância com extremismo religioso. É um filme, veja só, que deixa a cidade de Cubatão com ares de "Blade Runner".
A boa notícia é que, ao longo de uma trama que experimenta diversas cores, sentimentos e sensações, "Pedágio" emerge triunfante. Talvez porque, embora lide com temas espinhosos, equilibrando a mistura com um insuspeito senso de humor, a diretora do excepcional "Carvão" nunca perca o foco de que não está subindo num palanque para pregar alguma verdade: ela está criando cinema.
O pulso firme fica claro quando Markowicz coloca suas cartas na mesa e, apesar da sugestão de um caminho óbvio, escolhe avenidas narrativas sempre inusitadas e surpreendentes. "Pedágio" faz o recorte de um microcosmo muito peculiar e dele extrai histórias que estranhamente se completam.
Cá estão a mulher que se enrosca com um bandido de quinta, a mãe que toma todas as decisões erradas esperando "consertar" o filho, a fanática religiosa que não desce da tamanca moral nem quando seus "pecadilhos" são expostos, o pastor picareta, o garoto que só quer ser feliz. São personagens que se confundem e se esbarram e mostram o quanto esse negócio de viver é complicado.
À frente da mistura está Suellen (a talentosíssima Maeve Jinkings), mãe solo que trabalha como cobradora no pedágio. Seu desespero como mãe é ver o filho, Tiquinho (Kauan Alvarenga), abraçando sua sexualidade. O pânico de ver sua cria como "praticamente um travesti" faz Suellen disfarçar a própria homofobia como "cuidado" e aceitar a sugestão da amiga Telma (Aline Marta Maia) para matricular o garoto num curso da igreja para "curar" sua orientação sexual. "Depois que ele fizer 18 anos é tarde, ele perde a curva de virilidade", alerta Telma.
Por um breve momento, "Pedágio" parece seguir o drama (bem pesado e bem real) das "terapias de conversão" em que picaretas, geralmente de igrejas evangélicas, usam pseudociência e cobram uma fortuna para aplicar uma inexistente "cura gay". Carolina, muito espertamente, opta por mostrar o quanto tais práticas são patéticas, e o filme ganha com sua escolha pelo deboche.
Esse tom ganha seu maior aliado em Kauan Alvarenga. Longe de retratar um jovem gay atormentado por sua orientação sexual e pelo olhar preconceituoso da sociedade, seu Tiquinho surge confortável em sua própria pele. Ele quer aprender inglês para dublar melhor (menos Anitta, mais a musa do blues Dinah Washington), despreza com ironia o namorado folgado da mãe e se espanta quando o crush lhe diz que trabalha como auxiliar de dentista - "Nem todo gay quer ser diva", dispara o moço.
O texto é, por sinal, o ponto alto de "Pedágio". Markowicz domina a cadência das palavras e pontua seu roteiro com tiradas tão naturais quanto inusitadas, acentuando o bom humor como uma vírgula para o drama bem real que ela desenha. A absurda "cura gay", por óbvio, não tem nada de engraçada. Ela desponta como o farol para o qual Suellen direciona seu preconceito quando, para bancar o "tratamento" de Tiquinho, acha por bem ajudar o namorado (Thomas Aquino) a roubar relógios de gente endinheirada que passa pelo pedágio. "Coisas boas são caras mesmo", reflete a amiga Telma.
Expor as mazelas do Brasil é expediente rotineiro em nossa cinematografia. A diferença é menos o assunto - religião, crime, sexualidade - e mais a abordagem. "Pedágio" nunca dilui a tensão de seus temas complexos como uma farsa. Pelo contrário: o humor ressalta que, por trás de absurdos normatizados por mercadores do ódio travestidos de "defensores da moral", existem problemas sérios que todos os dias resultam em pequenas tragédias. O amor de mãe, como Carol Markowicz mostra em "Pedágio", não está imune à soberba da ignorância.
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