Roberto Sadovski

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Opinião

Paul Giamatti surge em outra atuação sublime no agridoce 'Os Rejeitados'

Uma dos momentos mais curiosos em minha vida trabalhando com cinema foi observar Paul Giamatti em ação. Não no cinema, hábito que cultivo com bastante atenção desde que ele deixou as sombras de filmes como "Donnie Brasco", "O Rei da Baixaria" (Pig Vomit!) e "O Show de Truman" para ganhar mais destaque em "O Mundo de Andy".

Foi ao vivo, nas filmagens da comédia "Titio Noel", rodada nos arredores de Londres. O show era de Vince Vaughn, mas era Giamatti, no papel ingrato do Papai Noel, quem eletrizava o set, take após take. Ele expandia o texto original e fazia do "bom velhinho" um sujeito ranzinza e amargurado, improvisando suas falas e encontrando humor onde não havia nada. Testemunhar tamanho talento foi hipnotizante.

De certa forma, "Os Rejeitados" traz o ator exercitando uma variação desse mesmo tipo. Mas de forma alguma isso é um demérito. Pelo contrário: Giamatti traz empatia a um personagem que em nenhum momento merece a nossa. Humanizar uma caricatura não é para qualquer um, e seu trabalho aqui é um assombro que vive nos detalhes, nas pequenas idiossincrasias.

Nas mãos de qualquer outro, "Os Rejeitados" seria mais um drama edificante que nos faz torcer pelo perdedor, talvez por ele ser um espelho preciso de nós mesmos. Nas mãos de Alexander Payne, contudo, o filme ganha escopo, ganha nuances, em que seus personagens revelam profundidade insuspeita e nublam nossas expectativas, mesmo que o caminho seja familiar.

O fato de o filme ser ambientado nos corredores áridos de um internato, palco de dúzias de filmes, contribui para esse reconhecimento. É dezembro de 1970, e com a chegada do recesso do fim do ano, os alunos endinheirados voltam para casa - mas nem todos. Por uma rasteira do destino - e de sua mãe desinteressada - o jovem Angus Tully (o ótimo Dominic Sessa) é deixado para trás. Seus "guardiões" são a cozinheira Mary Lamb (Da'Vine Joy Randolph) e o professor Paul Hunham, papel de Paul Giamatti.

Na largada o filme já desenha quem é Hunham. Professor de história que não desperta simpatia em seus pares, ele é ainda mais odiado pelos alunos. Rígido e dotado de senso de humor corrosivo, ele aperfeiçoa formas elegantes de chamar alguém de estúpido. Pode até parecer que Hunham é voluntário para a tarefa de babá. Mas a verdade é que, assim como Tully, ele também está preso - literal e metaforicamente.

Se Alexandfer Payne tropeçou na própria ambição em seu último trabalho, o esforçado e esquecível "Pequena Grande Vida", em "Os Rejeitados" ele retoma a boa forma de "As Confissões de Schmidt", "Os Descendentes" e, claro, "Sideways", no qual ele dirigiu o próprio Paul Giamatti. O que ele traz aqui são indivíduos tolhidos por suas próprias imperfeições, que terminam como combustível para ampliar a percepção de quem os cerca. A simbiose é inevitável.

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Dominic Sessa, Paul Giamatti e Da'Vine Joy Randolph em 'Os Rejeitados'
Dominic Sessa, Paul Giamatti e Da'Vine Joy Randolph em 'Os Rejeitados' Imagem: Universal

O fracasso e a posterior redenção de sujeitos aparentemente desprezíveis é matéria-prima das melhores histórias de Payne, e talvez nenhum de seus protagonistas abrace estes predicados com tanta sofreguidão quanto Paul Giamatti. É óbvio que sua jornada em "Os Rejeitados" é (mais ou menos) clara desde o primeiro momento. O importante, contudo, não é a linha de chegada, e sim todo o trajeto.

Tudo isso é condensado em um filme de ambições modestas, mas executado com uma produção exemplar. A Academia Barton é um sem fim de corredores vazios e salas inabitadas, a representação física e expandida do isolamento de seus habitantes. Payne é tão habilidoso em materializar o vazio desesperado confinado no peito de seus protagonistas que uma viagem para Boston, em vez de riscar a sensação de solidão, a amplia.

"Os Rejeitados" é o remédio perfeito para o cinema moderno: seu ritmo é lento, seus diálogos não aceleram para a catarse, seus altos e baixos ocorrem no hiato entre a respiração e o pulso. Acima de tudo, seus personagens são pessoas completas, tridimensionais, que nos convidam a compartilhar de sua dor, de suas lágrimas e do conforto que eles encontram uns nos outros. Conduzindo de forma involuntária essa falsa família disfuncional, Paul Giamatti mostra mais uma vez porque ele é um gigante.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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